domingo, 29 de abril de 2012

A pergunta


* Por Stanley Ellin


Tradução do texto original com o título The Question de Luís Varela Pinto


Eu sou eletrocutor de profissão… prefiro esta palavra a carrasco; acho que as palavras são importantes. Quando eu era ainda uma criança, as pessoas que enterravam os mortos chamavam-se cangalheiros e depois, com o correr do tempo, a certa altura passaram a chamar-se armadores, e por isso estão agora melhor.

Tomemos como exemplo a pessoa que era o cangalheiro na minha terra. Era um homem decente, respeitável e muito amistoso, se o deixassem, mas o fato é quase ninguém o deixava. Hoje, o filho — que agora dirige o negócio — já não é cangalheiro, mas armador, e é bem recebido em toda a parte. Por acaso ele é funcionário na minha Loja e é um dos seus membros mais populares. E para isso, bastou substituir uma palavra por outra. O trabalho é o mesmo, mas a palavra é diferente, e as pessoas vão mais pelas palavras do que pelo seu significado.

Ora, como já disse, sou eletrocutor — que é a palavra profissionalmente correta para designar aquilo que faço no meu Estado, onde a cadeira elétrica é o meio de execução.

Não que isto seja a minha profissão principal. De fato é apenas uma atividade extra, como o é para a maioria daqueles que, como nós, procedem às execuções. A minha atividade principal é dirigir uma loja de venda e reparação de material elétrico, tal como o meu pai antes de mim. Quando ele morreu, herdei não só o negócio como também o cargo de eletrocutor do Estado.

Criamos uma tradição, o meu pai e eu. Ainda antes do virar do século, quando a eletricidade era uma coisa ainda relativamente nova, já ele dirigia a loja com bons lucros, e foi o primeiro homem a proceder, com sucesso, a uma eletrocussão para o Estado. Contudo esta não foi verdadeiramente a primeira execução no Estado. A primeira, de fato, foi uma experiência que o eletricista que instalou a cadeira na prisão estadual completamente arruinou. O meu pai, que ajudara na instalação da cadeira, ajudou também na eletrocussão, e contou-me que tudo o que poderia correr mal correu mesmo mal. A corrente estava muito irregular, o chefe dele ficou agarrado ao comutador e o homem que estava na cadeira continuava vivo e aos pontapés e começou a arder até ficar transformado num torresmo. Na vez seguinte, o meu pai ofereceu-se para fazer o trabalho sozinho, refez a instalação elétrica da cadeira e manejou o comutador com tal perícia que lhe ofereceram o lugar de eletrocutor oficial.

Eu segui-lhe as pisadas, e é assim que se cria uma tradição, mas receio que esta termine comigo. Eu tenho um filho, e o que eu lhe disse e o que ele me disse a mim é o cerne da questão. Ele fez-me uma pergunta—bem, em minha opinião, foi o tipo de pergunta que está no fundo da maior parte dos problemas do mundo, hoje. Assim como se não devem acordar moscas que estão a dormir, também há perguntas que se não devem fazer.

Para entender isto, acho que, primeiro, o leitor tem de me entender a mim, e nada há de mais fácil. Tenho sessenta anos e começo já a aparentá-los: um pouco de peso a mais, sofro às vezes de artrite quando o tempo está úmido; sou um bom cidadão, queixo-me dos impostos, mas pago-os a tempo e horas, voto no partido certo, e dirijo o meu negócio de maneira suficientemente eficiente para poder viver confortavelmente.

Sou casado há já trinta anos e em todo este tempo nunca olhei para outra mulher. Bom, olhar, talvez, mas nada mais do que isso. Tenho uma filha já casada e uma neta com cerca de um ano que é o bebê mais bonito e sorridente da cidade. Estrago-a com mimos e não me arrependo, porque, em minha opinião, é para isso que os avós servem — para estragar os netos. O papá e a mamã lá estão para as coisas sérias; o vovô para a brincadeira.

E além de tudo isto, tenho um filho que me faz perguntas. Daquelas que não se fazem.

Junte o leitor estes quadros e o que obtém é o retrato de alguém exatamente como você. Eu podia muito bem ser um vizinho seu, ou um seu velho amigo, ou o tio que sempre aparece nos casamentos ou nos funerais. Sou exatamente como o leitor.

Claro que, por fora, todos parecemos diferentes, mas mesmo assim, somos capazes de nos reconhecer à vista como o mesmo tipo de pessoas. Lá bem no fundo, e aí é que interessa, temos todos os mesmos sentimentos, e sabemos isso sem que seja necessário fazer perguntas sobre eles.

— Mas — dirá o leitor — há uma diferença entre nós. Você é quem procede às execuções e eu sou aquele que lê a notícia no jornal, e isto é muito importante, independentemente do ponto de vista.

O leitor acha que sim? Bem, veja a coisa sem preconceitos, veja-a muito honestamente e terá de admitir que está a ser injusto.

Encaremos os fatos, nós estamos todos no mesmo barco. Se um velho amigo seu for selecionado para fazer parte de um júri que considera um assassino culpado, o leitor não lhe vai depois fechar a porta na cara, pois não? Mais: se o leitor conseguisse que o apresentassem ao juiz que condena esse assassino à cadeira elétrica, ficaria muito orgulhoso, não é verdade? E ficaria muito honrado em sentá-lo à sua mesa e teria logo a preocupação de divulgar o fato.

O leitor não se importa, portanto, de ser amigo dos jurados que o condenaram e do juiz que ditou a sentença; e então o homem que tem de acionar o comutador? Ele completou o trabalho que o leitor desejava que fosse feito, e assim tornou este mundo melhor. Por que é que ele há de esconder-se num qualquer canto escuro até que precisem dele outra vez?

Não vale a pena negar que quase toda a gente acha que ele o deve fazer, e ainda menos que é uma coisa muito cruel uma pessoa na minha situação ter de enfrentar tal coisa. Se o leitor me permite uma linguagem mais dura, contratar uma pessoa para desempenhar uma tarefa desagradável e depois desprezá-la é um ultraje danado. Por vezes é difícil suportar tal justiça.

E como é que eu vivo com isto? Da única maneira possível — mantendo o segredo bem guardado e nunca me deixando cair na tentação de o divulgar. Não gosto disto, mas também não sou parvo.

O problema é que eu sou uma pessoa bonacheirona e amigável por natureza. Sou do tipo sociável. Gosto das pessoas e quero que gostem de mim. Nas reuniões da Loja ou no clube, no campo de golfe, estou sempre no centro. E sei o que aconteceria se eu alguma vez abrisse a boca para revelar o meu segredo. Cinco minutos de sensação e depois o arrepio a instalar-se lentamente. Seria o fim de toda a minha vida ali mesmo, naquela hora, daquele tipo de vida que quero viver, e ninguém no seu juízo perfeito deita fora sessenta anos da sua vida em troca de cinco minutos de sensação.

O leitor já está a ver que eu pensei muito sobre o assunto. E mais, não pensei por pensar. Não tenho a pretensão de ser uma pessoa culta, mas gosto de ler livros sobre qualquer assunto que me interesse e as execuções são um dos meus principais interesses desde que comecei a trabalhar nisto. Mando vir os livros para a loja, onde ninguém repara em mais uma encomenda que chega, e guardo-os bem fechados numa caixa no meu escritório para assim os poder ler em privado. Este procedimento como que me cheira um bocado mal — ninguém na minha idade gosta de se sentir como um miúdo que se esconde para ler uma revista pornográfica — mas não tenho outro remédio. Não há uma única criatura sobre a Terra, exceto o diretor da prisão estadual e mais dois guardas de lá, que saiba que sou eu que aciono o comutador nas execuções, e tenciono tudo fazer para que as coisas continuem como estão.

Ah, é verdade, o meu filho agora já sabe. Bom, em certos aspectos ele é um tipo difícil, mas não é parvo. Se eu não tivesse a certeza de que ele não iria abrir a boca sobre o que eu lhe contei, começava logo por não lhe ter dito nada. E eu aprendi alguma coisa com esses livros? Pelo menos o bastante para me poder orgulhar daquilo que faço para o estado e da maneira como o faço. Podemos recuar na história tanto quanto quisermos que sempre encontramos a figura do carrasco. No dia em que pela primeira vez os homens fizeram leis com vista a manter a paz entre eles, nasceu também o primeiro carrasco. Sempre houve infratores; tem de haver sempre uma maneira de os castigar. As coisas são tão simples como isto.

A questão é que atualmente há muita gente que não quer que as coisas sejam assim tão simples. Eu não sou hipócrita. Não sou daqueles idiotas de vistas curtas que pensam que sempre que aparece uma pessoa com um impulso de generosidade a consideram como uma espécie de excêntrico que não regula bem da cabeça. Mas essa pessoa pode estar enganada. Eu incluiria a maioria das pessoas que são contra a pena de morte neste grupo. São bons cidadãos, bem intencionados, que nunca na vida estiveram suficientemente perto de um assassino ou de um violador para lhe sentirem o cheiro do mal. De fato, são tão sãos e bem intencionados que não conseguem imaginar alguém neste mundo que não seja como eles. E assim, eles dizem que alguém que comete um homicídio ou uma violação é um ser humano vulgar a atravessar um mau momento. Não é um criminoso, dizem eles, apenas está doente. Não precisa da cadeira elétrica; o que precisa é de um velho médico simpático que lhe examine a cabeça e lhe ajuste os parafusos do cérebro. Dizem que realmente criminosos é coisa que não existe. Há apenas pessoas sãs e pessoas doentes, e as que merecem toda a nossa preocupação são as doentes. Se por acaso elas de vez em quando assassinam ou violam alguns dos sãos, bem, então devem ir a correr para o médico.

É este o argumento de princípio ao fim e eu seria a última pessoa a negar que ele seja apresentado com espírito de solidariedade e com boas intenções. Mas é um falso argumento. Omite uma coisa que interessa muito. Quando alguém comete um homicídio ou uma violação já deixou de pertencer à raça humana. Um homem tem um cérebro humano e uma alma, dádiva de Deus, para controlar a sua natureza animal. Quando o animal que há nele toma as rédeas, ele deixa de ser um ser humano. Então tem de ser exterminado da mesma maneira que qualquer animal que fique bravo no meio de pessoas indefesas. E o meu dever é ser o exterminador.

Provavelmente a questão é que as pessoas já não entendem o significado da palavra dever. Eu não quero parecer antiquado, por amor de Deus, mas quando eu era um jovem as coisas eram mais diretas, mais precisas. Aprendia-se a distinguir o bem do mal, aprendia-se a fazer o que tinha de ser feito, e não se faziam perguntas a cada passo. Ou se se tinha de fazer perguntas, as que interessavam eram apenas como e quando.

Depois veio a psicologia, vieram os professores e a pergunta principal era sempre porquê. Pergunta a ti próprio porquê, porquê, porquê para tudo o que fazes e acabas por não fazer nada. Mais duas gerações assim e no fim vamos ter uma raça de pessoas sentadas nas árvores como os macacos, a coçar a cabeça.

Será isto forçar a nota? Acho que não. A vida é uma coisa complicada. Durante toda a sua vida um homem depara-se com situações atrás de situações, e a maneira de as resolver é viver de acordo com as regras. Se nos perguntamos porquê muitas vezes, acabamos por ficar tão confusos que soçobramos. O espetáculo tem de continuar. Porquê? Primeiro as mulheres e as crianças. Porquê? O meu país, para o bem e para o mal. Porquê? Não te preocupes com o dever. Continua antes a perguntar-te porquê até que seja tarde demais para fazer alguma coisa.

Por volta da altura em que eu comecei a ir à escola o meu pai deu-me um cachorrinho, um pastor escocês, chamado Rex. Alguns anos mais tarde o Rex tornou-se subitamente hostil, como às vezes acontece com os cães, e depois feroz, e um dia mordeu a minha mãe quando ela estendia a mão para lhe fazer uma festa.

No dia seguinte vi o meu pai sair de casa com a espingarda de caça e o Rex preso a uma trela. Não estávamos na época da caça e portanto eu sabia o que ia acontecer ao cão e porquê. Mas é desculpável que um rapaz faça perguntas que um homem deve ter a inteligência bastante para não fazer.

— Onde é que vais levar o Rex? — perguntei. — O que é que lhe vais fazer?

— Vou levá-lo para fora da cidade — disse o meu pai. — Vou matá-lo.

— Mas porquê? — perguntei eu, e foi nessa altura que o meu pai me fez ver que só há uma resposta para tal pergunta.

— Porque é uma coisa que tem de ser feita.

Nunca mais esqueci aquela lição. E foi duro; durante um tempo odiei o meu pai por causa daquilo, mas quando cresci acabei por ver como ele tinha razão. Ambos sabíamos a razão por que o cão tinha de ser abatido. Além disso, todas as perguntas não levariam a parte nenhuma. Por que é que o cão se tornara feroz, por que é que Deus tinha posto na terra um cão para ser morto daquela maneira — são perguntas que se podem pôr até ao fim dos tempos, e enquanto as estamos a fazer continuamos a ter um cão feroz entre mãos.

É estranho olhar agora para trás e perceber que quando a história do cão aconteceu, e já muito antes dela e muito depois dela, o meu pai já era eletrocutor e eu nunca o soube. Ninguém sabia, nem mesmo a minha mãe. Umas tantas vezes por ano, o meu pai fazia a mala, pegava em algumas ferramentas, partia e ficava dois dias fora, mas era tudo o que qualquer de nós sabia. Se se lhe perguntava onde ia dizia simplesmente que tinha um trabalho a fazer fora da cidade. Ele não era homem para andar atrás de mulheres ou para ir algures embebedar-se sozinho, e portanto ninguém pensava duas vezes no assunto.

Comigo a coisa passava-se da mesma maneira. Descobri como a coisa funcionava bem quando finalmente contei ao meu filho o que andara a fazer naqueles trabalhos fora da cidade, e que tinha obtido autorização para o levar a ele como ajudante e a treiná-lo para ele poder manobrar a cadeira sozinho quando eu me reformasse. Pela sua reação fiquei logo a saber que ele estava tão estupefato com aquilo como eu ficara trinta anos antes quando o meu pai me confidenciara o mesmo.

— Eletrocutor? — disse o meu filho. — O pai é eletrocutor?

— Bem, não é vergonha nenhuma — disse eu. — E como é uma coisa que tem de ser feita, e que alguém tem de fazer, porque não mantê-la na família? Se tu soubesses alguma coisa sobre isto, já saberias que é uma profissão que muitas vezes passava de pai para filho, geração após geração. Há algum mal numa tradição boa e segura? Se houvesse mais gente a acreditar na tradição não haveria hoje tantos problemas no mundo.

Era o tipo de argumento mais do que suficiente para me convencer quando eu tinha a idade dele. Só que eu me tinha esquecido de que o meu filho não era como eu, por muito que eu quisesse que ele fosse. Era já um homem adulto, com os seus direitos, mas um adulto que nunca tinha ainda assentado nas suas responsabilidades. Eu sempre fechara os olhos a isso, sempre o vira como eu gostava que ele fosse e não como ele era na realidade.

Quando, ao fim de um ano, ele deixou a universidade, eu disse, está bem, há pessoas que não foram feitas para a universidade, eu também nunca lá andei, portanto, que interessa isso? Quando ele saía com moças umas atrás das outras e não havia maneira de se decidir a casar com nenhuma, eu dizia, bem, ainda é muito novo, anda a dar as suas cabeçadas, mas muito em breve há de vir a altura em que se sentirá preparado para constituir família. Quando ele, na loja, estava sentado a sonhar acordado, em vez de tratar do negócio, nunca fiz barulho por causa disso. Eu sabia que quando estava para aí virado, ele conseguia ser um eletricista tão bom como os melhores, e nestes tempos amenos as pessoas podem entregar-se mais aos sonhos e menos ao trabalho do que antigamente.

A verdade é que a única coisa que eu queria era ser seu amigo. Com todos os seus defeitos, ele era um rapaz bem parecido, e tinha um fundo bom. Não era muito de se meter com as pessoas, mas quando queria conseguia conquistar a simpatia de qualquer um. E durante todo este tempo, enquanto ele crescia, mantinha-se no meu inconsciente a ideia de que ele era a única pessoa que iria um dia conhecer o meu segredo e o partilharia comigo e o tornaria mais fácil de suportar. Eu não sou, por natureza, uma pessoa reservada. Uma pessoa como eu precisa de uma ideia como esta para o sustentar.

Assim, quando chegou a altura de lhe contar, ele abanou a cabeça e disse não. Senti que o chão me fugia debaixo dos pés. Discuti com ele, mas ele continuou a dizer não, e eu perdi a cabeça.

— Tu és contra a pena de morte? — perguntei-lhe. — Não tens de pedir desculpa por isso. Subirias mesmo na minha consideração se fosse essa a tua única razão.

— Não sei se é — disse ele.

— Bom, tens de te decidir por um lado ou pelo outro — disse-lhe eu. — Detestaria pensar que afinal tu és como todos os outros hipócritas que por aí andam e que dizem que está muito certo que se condene um homem à cadeira elétrica, mas que é muito mau que depois se ligue a corrente.

— E tenho de ser eu a ligar a corrente? — disse ele. — Ou tu?

— Alguém tem de o fazer. Há sempre alguém que tem de fazer o trabalho sujo para todos os outros. Não é como nos tempos do Antigo Testamento quando toda a gente o fazia por suas mãos. Sabes como é que eles executavam um homem nesses tempos? Deitavam-no no chão, atavam-lhe as mãos e os pés e toda a gente que por ali estava tinha de lhe atirar pedras até o matar. Não convidavam ninguém para estar lá a ver. Nessa altura tu não terias tido grandes possibilidades de escolha, não é verdade?

— Não sei — disse ele. E então, como ele era esperto como tudo e sabia como voltar as palavras contra o próprio que as proferiu, disse:

— Afinal, eu também não estou inocente.

— Não fales como uma criança — disse eu. — Tu não cometeste nenhum homicídio ou qualquer outro crime que exija a pena de morte. E se tens tanta certeza de que a Bíblia tem todas as respostas, tens de te lembrar de que deves dar a César o que é de César.

— Bem — disse ele — neste caso, vou deixar-te apresentar as tuas razões.

Fiquei logo ali a saber, pela maneira como ele disse aquilo e pela maneira como me olhou, que não valia a pena discutir com ele. O pior de tudo era saber que nos tínhamos afastado um do outro e que nunca mais voltaríamos a ficar juntos de novo. Eu devia ter tido o senso suficiente para deixar as coisas por ali. Devia ter-lhe simplesmente dito para esquecer tudo aquilo e continuar de boca calada sobre o assunto.

Talvez eu tivesse feito isso, se alguma vez tivesse pensado na possibilidade de uma recusa da sua parte. Mas como nunca tinha pensado em tal possibilidade, fui apanhado de surpresa e fiquei perturbado demais para pensar com sensatez. Confesso-o agora. A culpa foi minha, ao fazer daquilo uma questão e ao levá-lo a fazer aquela pergunta que ele nunca devia ter feito.

— Já estou a ver — disse-lhe eu. — É aquela velha história, não é? Os outros que o façam. Mas se a sorte ditar o teu nome para figurar num júri e mandares um homem para a cadeira elétrica, está tudo bem. Pelo menos está tudo muito bem desde que haja mais alguém que faça o trabalho que vocês e o juiz e todas as pessoas de bem desejam que se faça. O teu trabalho é na loja. Lá podes tu ser simpático e amável, a fazer montagens elétricas e a fazer tocar a máquina registradora. Eu posso perfeitamente cumprir o meu dever sem a tua ajuda.

Magoou-me muito dizer aquilo. Nunca lhe tinha falado daquela maneira, e isso faz doer. Mas o mais estranho é que ele não pareceu ficar zangado; apenas olhou para mim intrigado.

— Então é só isso que a coisa representa para ti? — disse ele. — Um dever?

— É.

— Mas pagam-te para isso, não pagam?

— Pagam; pouco, mas quanto basta.

Ele continuou a olhar-me daquela maneira.

— Apenas um dever? — disse, sem nunca tirar os olhos de mim. — Mas tu gostas, não?

Foi esta a pergunta que ele fez.

Tu gostas, não? Fica-se ali a olhar para a cadeira através de um buraco na parede. Em trinta anos eu já estive ali a olhar a cadeira mais de cem vezes. Os guardas trazem alguém para dentro da sala. Geralmente ele está entorpecido; às vezes grita, esbraceja e luta. Às vezes é uma mulher, e uma mulher pode ser tão difícil de tratar como um homem quando é levada para a cadeira. Mais tarde ou mais cedo, seja ele quem for, atam o indivíduo e enfiam-lhe a carapuça na cabeça. E nós já temos a mão no comutador.

O diretor dá o sinal e nós puxamos o comutador. A corrente atinge o corpo como se um tremendo jato de ar subitamente o enchesse. O corpo salta da cadeira ficando apenas preso pelas correias. A cabeça sacode-se e dela começa a sair uma espiral de fumo. Nós desligamos o comutador e o corpo cai de novo para trás.

Repetimos a ação uma e outra vez para ter a certeza. E sempre que puxamos o comutador ficamos a imaginar o que a corrente está a fazer àquele corpo e o aspecto que a cara terá por debaixo da carapuça.

Gostas?

Eis a pergunta que o meu filho me fez. Foi o que ele me perguntou, como se, bem no fundo, eu não tivesse os mesmos sentimentos de todos nós.

Gostas?

Mas, meu Deus, como é que alguém pode não gostar?


• Escritor norte-americano de contos policiais

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