quinta-feira, 26 de abril de 2012

O sal da terra


* Por Rubem Costa

“Um profeta só é desprezado em sua pátria e em sua casa”. (Mt. 13)

Em Nazaré, enfrentando os conterrâneos que duvidavam de sua capacidade, Cristo consola os discípulos com o preceito que, atravessando as idades, se converte no aforismo da desolação: “Profeta em sua terra não faz milagre”. Definição do homem renegado entre sua gente pelo que de mais precioso existe na vida: o reconhecimento de seu trabalho e o respeito de sua família. Um drama comum que persiste entre nós (repetitivo é dizer) na desdita de Carlos Gomes, um gênio desprezado enquanto vivo na cidade natal, apenas porque na infância fora um menino pobre chamado Tonico. E não adianta denunciar, como tem sido feito tantas vezes: a explicação é singela e tem como ponto crítico a deplorável indiferença do homem ao filho da terra enquanto não lhe dá poder político.


Na concepção pragmática do ser, o valor histórico não conta, o que importa é o lucro imediato. Consequentemente, na evolução do tempo, a ópera do Tonico de Campinas — tanto quanto a música sacra do Padre José Maurício — não conta, porque politicamente já não comove. Se fosse a insana algazarra do Ai Se eu te Pego, va lá — o nome da porcaria está dizendo, ficaria na parada de sucessos, rendendo uma possível cadeira de vereador ou deputado para o medíocre cantador. Uma insânia. Esse desconsolo só não é total porque, mercê de Deus, ainda existe o sal da terra proclamado por Cristo no Sermão da Montanha. Sal que garante o sabor da arte e faz sonhar com encanto da música que edifica e consola. Metáfora que em Campinas se traduz no trabalho beneditino de entidades particulares como o Conservatório que leva o nome de Carlos Gomes e onde Léa Ziggiatti, contrapondo-se à apatia do poder público, criou uma escola de ópera. Empreendimento de reconstrução que tem a companhia paralela de outra instituição de igual nobreza, a Associação Brasileira Carlos Gomes de Artistas Líricos (Abal), que funciona também sob a égide do mesmo Tonico de Campinas. Agrupamento que, sob a liderança do tenor Alcides Ladislau Acosta, vem desenvolvendo consolador programa de popularização da música operística e canções de compositores eruditos. Trabalho persistente de três décadas que lembra a imagem da sentinela de Pompeia: soldado ereto no seu posto de guarda enquanto as lavas do Vesúvio cobriam a cidade.


Assim tem sido a Abal que, desde a fundação, em 1981, periodicamente promove reuniões musicais para agasalhamento do que temos de melhor na arte seletiva. Ainda, semana passada, fui assistir ao Encontro nº 1.061. Repito = Um mil e sessenta e um. Definição numérica que, dividida pelo tempo de existência da entidade, resulta na média de 35 congraçamentos musicais por ano, tendo por propósito sempre fazer valer o sabor do sal da terra tal como preceitua a alegoria bíblica. Assim, no salão emprestado pela ACI, foi-me dado aplaudir o soprano Regina Márcia Tava res, junto da qual se apresentava também o tenor Antoine Kolokathis.


Regina, todos sabem, é valor à parte; especialista em preservação do patrimônio cultural e museologia, é talento polivalente que reúne, a um só tempo, três virtudes : antropóloga consagrada pela Unesco, educadora voltada para humanização lúdica de brinquedos infantis e agora (quando já cumprido o tempo louvável de professora universitária) soprano de alto nível que sai a campo para valorizar o canto lírico. No “encontro” sua participação foi notável, particularmente na interpretação de O mio babbino caro, da ópera Gianni Schicchi, de Puccini, página universalmente conhecida, consagrada várias vezes por Maria Callas, Renata Tebaldi e Montserrat Caballé. Quanto a Kolokathis, tenor em evolução, a par de excelente postura cênica, revelou qualidades que lhe reservam promissor futuro. No fulcro da apresentação, impossível deixar de mencionar a presença de Chiquinho Costa, pianista de alto mérito já celebrizado como assistente de grandes nomes, principalmente de Niza de Castro Tank, figura notável de Campinas e expressão de relevo da cena lírica internacional.


Estava a escrever estas notas, quando deparo no Correio Popular com a notícia de que uma audiência pública está sendo programada para debater um novo nome para o Aeroporto de Viracopos, consoante projeto do deputado Paulo Freire já aprovado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados em Brasília. Segundo a imprensa, o evento ser virá como consulta à população quanto à nova denominação. Em que pese à relevância dos nomes concorrentes, parece-me, todavia, que o patrono já deveria estar, sem indecisão, definido por decorrência lógica e tradição histórica. Se não, vejamos: o aeroporto está em Campinas e é internacional. Carlos Gomes é internacional e está “ad-eternum” em Campinas. Cultural, social e politicamente, não há o que discutir: adotado o nome, cada passageiro que embarcar ou desembarcar em Campinas fica informado de que está na cidade — berço de um dos maiores musicistas do mundo.


Assim — senhores e senhoras, jovens e anciãos — a audiência será o instante para fazer valer o sal da terra. Momento intransferível porque o tempo é como a água do rio passa — corre sonora, mas não retorna. Pensando numa cruzada, desta coluna envio um pedido de congraçamento aos generais de nossa cultura — entre os quais José Alexandre dos Santos Ribeiro, o maior conhecedor da vida e obra do Tonico de Campinas, Agostinho Tavolaro, presidente da ACL que acaba de ser eleito membro da Academia Paulista de Histíria, Marino Ziggiatti, do CCLA, Olga Simson, do Instituto Histórico, Sérgio Caponi, da ACLA, Arita Pettená, da ACCLFA, José Carlos Branco, da Maçônica de Letras, Luno Volpato, do CEPAC e demais gente culta de Campinas. Ao prefeito Pedro Serafim e aos políticos da cidade, rogo que se lembrem da lição do Eclesiastes: há um tempo para plantar e outro para colher.


• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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