quinta-feira, 19 de abril de 2012







Entertainer

* Por Marcelo Sguassábia

Filha única do casal Floriano e Aléxia Montezuma, Fatinha nasceu com uma memória prodigiosa, digna de tese pós-doc em neurologia. Dentre outras façanhas, a garotinha de cabelos cacheados aos 3 anos já sabia de cor o Princípio de Arquimedes, e a pedidos da família o enunciava às visitas. A certa altura das muitas reuniões semanais em sua casa, a partir de um sinalzinho combinado com o Tio Ernesto, lá ia a belezinha pro meio da sala, entrelaçando uma mão na outra e olhando para o teto, como quem puxa pela memória: "Todo corpo submerso em um fluido experimenta um empuxo vertical e para cima igual ao peso do fluido deslocado". Um belo dia arrematou, num improviso que divertiu muito os convivas: "E a mamãe falou assim que o Seu Arquimedes saiu da banheira correndo pra rua, gritando Eureka, Eureka! e assustando a vizinhança com o bilau de fora. Não sei se é verdade, ela que falou. O bilau de fora também... não sei porque eu nasci sem bilau, mas em compensação”...

A mãe foi rápida e tapou providencialmente a boca da criança, antes que continuasse e dissesse o que não devia.

Quando o sarau familiar se estendia além do previsto, Fatinha era de novo convocada para animar o ponche com pães de queijo, dizendo os nomes das cores do pantone Suvinil. Os convidados se revezavam, escolhendo a esmo um código numérico no leque de 1.563 matizes. Sem titubeio, a menina dizia o nome da tinta. Era um festival de terracotas, verdes maritaca, brancos cordilheira, azuis netuno. Para cada acerto, palmas e mais palmas. Até que alguém falou o código E098, correspondente a vermelho carmim. E a menina: “foi dessa cor que o papai ficou quando pegou a mamãe no sofá da sala com o Tio Ernesto, os dois do mesmo jeito que estava o Seu Arquimedes quando saiu da banheira”.

Constrangimentos assim costumavam, compreensivelmente, esfriar a reunião. Mas nem sempre eram motivo para estragar completamente a festa. Assim, se após a Polonaise de Chopin, tocada pela madrinha da menina, o pessoal continuasse sem arredar pé, o jeito era chamar a Fatinha para outro número imperdível.

Depois de se fazer um pouco de rogada, lá ia nossa entertainer mirim a desfiar, um após outro e quase perdendo o fôlego, os nomes de todos os presidentes e vice-presidentes equatorianos e de suas respectivas esposas, por ordem cronológica de posse.

Se ainda assim os convivas pedissem mais festa, e não tendo mais o que servir para comer ou beber, apelavam de novo para a superdotada Fatinha, desta vez lançando mão de um expediente muitíssimo mais eficaz que a vassoura atrás da porta. Era quando a pequerrucha pegava pesado, ao declamar de cabeça um edital do DETRAN, convocando motoristas para comparecerem à delegacia regional de trânsito, com os nomes em ordem alfabética, modelo do veículo, números da placa e do chassi. Limpava o pigarrinho da garganta e começava: “Marca/Modelo: GM/Chevette/1982. Proprietário: Aarão Fonseca de Sousa, Placa LVG3213/PI, Chassi
9BGLL19BSRB332112. Marca/Modelo Fiat/ Siena/2004; Proprietário:
Abdias Hugo Soares de Brito, Placa LVI5840/PI, Chassi
9BWZZZ30ZKT007813”...

O decoreba agiu como um repelente de moscas. Terminado o serviço Fatinha foi para a cama, não sem antes dar uma lida no catálogo telefônico de Teresina.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

Um comentário:

  1. É a mais do que famosa cultura inútil. Pobre criança, apresentando essa peculiaridade, nunca mais terá sossego, porém, antes dos cinco anos, e já esgotada, dará um basta. É duro ser criança prodígio, ainda mais quando tratada como aberração de circo.

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