sexta-feira, 23 de março de 2012



Histórias edificantes

* Por Jair Lopes

Era uma vez, abaixo da linha do equador, um país fictício medíocre, mal ajambrado e sem futuro, onde supostamente todos eram iguais perante a lei. Essa igualdade estava capitulada na constituição no seu artigo quinto: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos naturais e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, etc”.

O contraditório das normas que vigem nesse país imaginário, é que há o pressuposto que todos devem conhecer as leis e obedecê-las, contudo, no momento em que a justiça deve cobrar o respeito, a obediência e o acato às normas legais, pesos e medidas diferentes são aplicados a cada caso.

Assim, se um garoto rico, num momento de lazer, por barbeiragem e uso indevido de uma moto aquática atropelasse um menina pobre que estivesse brincando na areia da praia e a matasse, por exemplo, o inquérito revelaria que o menor em questão era inimputável e dispensado de qualquer sanção porque não fora autorizado por nenhum maior responsável para utilizar o veículo. Mesmo que tenha fugido de helicóptero do local do acidente sem prestar socorro à vítima. O inquérito seria arquivado e os pais da vítima não teriam nem direito a um pedido de desculpa dado pelos pais do causador da morte. Aliás, o inquérito nem sequer ouviria testemunhas que viram um adulto colocando o aparelho na água e viram o garoto, com um colega na garupa, dar cavalos de pau em áreas destinadas aos banhistas e proibidas a práticas náuticas. E o garoto não tinha habilitação.

Digamos que o filho de um dos homens mais ricos do país, dirigindo um automóvel de dois milhões de reais atropelasse um ciclista no acostamento. Esse indigitado rapaz, mesmo tendo várias multas – desprezadas e não pagas - por excesso de velocidade, exibiria em uma rede social os ferimentos causados pela imprudência do ciclista e insinuaria que o morto era responsável por seus (do motorista) prejuízos materiais e emocionais. Neste caso, como o homem pobre não estava presente para se defender, valeria a palavra do motorista rico e este só não pediria indenização aos familiares do ciclista morto porque era “humano” demais para fazer isso. E o delegado que preside o inquérito declararia que o morto foi imprudente, insinuando que foi bem feito para ele, na próxima que preste mais atenção no trânsito.

Nesse mesmo país, garotos de classe média alta da capital que colocassem fogo em um pobre índio que dormia num banco de praça não seriam apenados, pelo contrário, um deles que era filho de um juiz, ganharia um cargo público em uma repartição da capital. Cargo que ele sequer precisa comparecer para ganhar o equivalente a vinte salários mínimos, desses que trabalhadores comuns labutam de sol a sol, seis dias por semana para ganhar, e que não dá nem para alimentar uma pessoa.

Se, por exemplo, um médico famoso na área de fertilidade fosse acusado por mais de cinquenta mulheres por violação sexual enquanto sedadas para procedimento cirúrgico, e as acusações fossem comprovadas a ponto de se instaurar inquérito, não seria nada surpreendente se esse mesmo médico rico e freqüentador de colunas sociais não fosse impedido pela justiça de tirar passaporte com o visível intuito de sair do país antes de uma possível condenação. Seria até imaginável que a Polícia Federal lhe tenha negado o passaporte, mas um juiz tenha concedido liminar no sentido de facultar-lhe esse “direito” constitucional e ele tenha se mandado para o Líbano o qual não possui acordo de extradição com esse país hipotético. Dezenas de pacientes desse médico estariam amargando suas humilhações e conduzindo seus traumas decorrentes dessas violações.
Num estado do sul dessa terra inventada, se um deputado rico, bêbado de juntar criança, num carro importado, correndo a mais de duzentos por hora atropela e mata dois rapazes que esperavam, dentro do carro, o semáforo abrir. O atropelador, não indeniza as vítimas, não é apenado pela lei e nem sequer tem a carteira de habilitação suspensa.


Bandidos que se tornem muito ricos depois de fraudarem o INSS ou na construção de um Tribunal de Contas, não recebem sanções compatíveis com o crime e nem precisam se preocupar em devolver um níquel do dinheiro roubado. Suas posições de milionários lhes isentam de punições e devoluções, mesmo que o dinheiro que lhes tornou assim tenha fins escusos. Nesse suposto país existe até uma tal Lei do Colarinho Branco que, em tese, deveria ser aplicada a corruptos e corruptores de alta linhagem, mas essa lei é apenas letra morta, jamais foi usada.

Nesse mesmo país, as prisões estão cheias de gente que foi amaldiçoada com a letra “P”. Pobres, pretos e prostitutas abarrotam as instituições penais. Ricos e influentes desconhecem o que é perder a liberdade. Dinheiro e notoriedade são diferenciais que comandam a “justiça” nesse paizinho. Mas, lembremos que a justiça é cega, surda e muda. A justiça é cega, não vê o crime, mas olha com interesse a conta bancária do acusado. A justiça é surda, não ouve o morto, mas presta atenção nas palavras daquele que sobreviveu se este tiver dinheiro. A justiça é muda, não condena o rico, mas insinua que o pobre sempre é o culpado. Como é um país inventado, não tem nome, mas se me fosse dado o poder de nomeá-lo eu, indignado, o chamaria de Patropi.

• Escritor

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