sábado, 31 de março de 2012



A história das árvores-homens

* Por Harry Wiese

O que está pensando, filho?

Papai sempre perguntava assim, quando me via agachado, cotovelos apoiados sobre os joelhos, mãos no queixo, olhos semicerrados, à noite, antes do jantar. Eu pensava coisas fantásticas sobre a vida, mas respondia que não pensava nada. E papai insistia:

─ O que está pensando, filho?

Enquanto eu permanecia nesta posição inadequada, mamãe preparava o jantar: ovos e aipim fritos com toucinho, numa frigideira velha. Uma pequena lamparina de querosene iluminava vagamente a casa de paredes de madeira de tábuas largas, meio desbotadas pela ação do tempo.

Numa noite, papai disse preocupado:

─ Querida, nosso filho está doente. Ele está muito estranho. Olhe seu jeito esquisito. Não é jeito de menino. Vamos ter que levá-lo a um médico.

Mamãe, com sua majestosa sabedoria, não se impressionou. Como eu poderia estar doente se brincava o dia inteiro e não sentia nada? O Dr. Bermudez me havia curado do tifo. Eu era um menino saudável. Mamãe retrucou:

─ Nem todos os meninos têm o mesmo comportamento. Deixa-o com as suas manias!

Nossa casa situava-se numa colina. Da varanda, avistava-se uma grande montanha coberta de mata virgem. Lá os homens desbravadores ainda não haviam chegado com seus machados e serras, mas de longe, já, cobiçavam aquelas terras fartas de madeiras e palmitos. Quase no meio daquela floresta, um pouco à direita, bem na linha do horizonte, no limite entre o céu e a terra, existiam duas árvores de grande porte, que se destacavam das demais, dando a impressão de que seriam homens, um cumprimentando ao outro. Nos dias de ventos fortes, parecia que estavam se movendo e, nos pensamentos de um menino, elas estavam vivas. Eram as minhas árvores-homens. De dia eram verdes, à noite, tornaram-se pretas, muito pretas, até a hora do milagre.

Eu esperava papai e mamãe dormirem. Papai sempre adormecia primeiro. A prova era o seu ronco forte e cadenciado. Mamãe levava mais tempo para adormecer. Eu sabia que ela meditava sobre os acontecimentos do dia e fazia projetos para o futuro. Isso prejudicava meus planos. Mas como eu poderia saber se mamãe estava dormindo? Eu tentava. Chamava-a baixinho com voz de anjo. Quando ela respondia, eu calava e quando não respondia, na ponta dos pés, dirigia-me à varanda.

Da varanda da velha casa, eu avistava as duas árvores em forma de gente. Lá, bem no meio das duas, nascia a Lua tão linda, cor de prata. Não havia, para mim, encanto maior do que observar aquele fenômeno. De uma coisa eu tinha certeza: ninguém no mundo inteiro assistia a um nascer de Lua tão lindo como eu.

Assim, em pouco tempo, as árvores-homens, lentamente, se tornaram brilhantes e a natureza se banhava nos raios macios do luar. Os sapos faziam algazarra nos pântanos e no riacho. Os animais da mata saíam das tocas e esconderijos. Os sons emitidos pelos grilos e outros insetos pareciam instrumentos musicais agudos. Os galos que dormiam nas laranjeiras anunciavam um novo dia por engano. E lá se ia a Lua, subindo cada vez mais no céu. Eu voltava à cama contente. Papai roncava, mamãe dormia tranquila e eu sonhava com as árvores-homens que significavam os mistérios da montanha e a beleza do mundo, lá fora, longe de casa a impressionar um menino sonhador.

Um dia papai vendeu a casa e eu, decepcionado, chorei baixinho para ninguém escutar. Não acreditava na beleza do luar de outra terra. Não acreditava na existência de outras árvores iguais as minhas.

O tempo passou e eu cresci. Muita coisa mudou. Não observava mais a Lua, decorava as lições da escola. Quando mamãe fritava ovos e aipim naquela frigideira velha, uma saudade enorme invadia meu coração, deixando as lágrimas à borda das pálpebras. Então, mamãe percebia minha indisposição. Quando me perguntava o que sentia, dizia que não era nada. Ninguém sabia que se tratava de um paraíso perdido no coração de um jovem.

Depois de muitos anos, voltei à terra dos meus sonhos, à terra das árvores-homens, à terra do luar mais bonito do mundo. Eram dez anos após a minha despedida. Andei. Procurei. Olhei para os lados, para a montanha, para as minhas árvores. Sentei-me sobre uma pedra e chorei feito menino. Os homens já haviam chegado com os seus instrumentos. A mata virgem das árvores vivas transformara-se em plantação de eucaliptos. A energia elétrica substituíra a beleza do luar de outrora. As lagoas secaram. As noites tornaram-se mudas e os animais da floresta morreram. Perdi o ânimo. Agachei-me. Coloquei os cotovelos sobre os joelhos, mãos no queixo e com os olhos semicerrados pensava em papai que um dia me perguntou, numa cozinha vagamente iluminada por uma lamparina de querosene:

─ O que está pensando, filho?

* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.

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