quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012







Semana gorda


* Por Marco Albertim

Olinda emprenha em janeiro. A casa, numa ladeira empedrada, vizinha ao Guadalupe, tem uma garagem sem carro. As paredes são adornadas com cores vivas; convém a uma coquista. Ela usa, sem cosméticos nas pregas do rosto, saias compridas, blusas cobrindo a cintura; há flores azuis e rosas de cima a baixo. A cerca de madeira protege a frente da casa. Na calçada, do lado de dentro, Alexandre, neto e filho de Selma do Coco, senta-se numa cadeira de balanço; convém ao corpo de mais de cem quilos. Tem uma sobrinha do lado, com viço nos olhos, na silhueta fina. A moça não carece de cuidados na estreiteza da calçada; cresceu caindo, hoje equilibra-se sem olhar para o chão.
Alexandre não posa feito um leão de chácara, sua conversa é chã. São três da tarde, ele guarda o sono prosaico da avó que o tem como filho. “A Boneca de Selma sai na quarta-feira de cinzas, às sete da noite”, adianta. É a personagem da avó; três metros de altura, muitas flores nas vestes. “A maquiagem começa em janeiro, com retoques na pintura e uma costura ou outra.” Não sabe, o valido da coquista, que o fundo da garagem tem os apetrechos de uma sala de parto; pincéis,espátulas, tesouras, agulhas, tintas, retalhos de pano, chitas estampadas; tudo para dar à luz a Boneca de Selma. Ali emprenha-se o carnaval, e na semana gorda poucos se dão conta de que houve um ritual espasmódico.
Selma dorme sem sonhar com o coco de roda. É uma moça nova nos 85 anos, porque poupa-se das reentrâncias dos paralelepípedos da rua, para saracotear num palco de madeira. Perdeu a pompa de deusa há 32 anos, quando enviuvou; mas manteve o tesouro intacto; velam-na o agogô, o surdo, o ganzá, o pandeiro, a alfaia. Tem na espreita mais meia dúzia de carnavais, posto que na agenda está comprometida, já agora, com shows em Petrolina, Itamaracá, Olinda, Arcoverde e Recife. Em Olinda, junta-se a Galo Preto, homenageia-o com cocos de sua autoria. O embolador embeiça-se quando ouve a voz de Selma, cava – Pega, pega minha rola... Ôh... Ôh.
Ela puxa o microfone. Seguem-na entre dez e doze tocadores. São netos e filhos, filhos e netos.
Ôh... Ôh...
Não longe dali, no Largo do Amparo, há a Travessa Coronel Joaquim Cavalcanti; ladeira estreita, os carros se aventuram. No meio do percurso, um beco do lado direito, beco sem saída. No pavimento de cima de um sobradinho, acomoda-se Aurinha do Coco. Tem quase sessenta anos, rosto juvento, estridência arrastada na voz, inda que enérgica. Selma, a mãe do primeiro marido de Aurinha, Zezinho, já morto, tem voz temporã. A ex-nora mantém refém o diapasão de quando fora cantora no coral de São Pedro Mártir, e no Madrigal do Recife – oito anos em cada um.
Não está tão feliz este ano; foi convidada para tão somente um show; na comunidade de Chão de Estrelas, Recife. De perfil telúrico, juntar-se-á aos cantos a Galo Preto. Tem nove artistas na trupe. Divide o microfone com Valéria, sua sobrinha, também cantora da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério.
Quarta, quinta e sexta-feira da semana pré-. Sábado gordo é uma promessa de sêmens. Rua do Amparo, a prelibação dá conta de minguados transeuntes de olhos azuis; cruzam-se com os caetés dos outeiros de cá. As casas, umas inseminam quadros, bibelôs arteiros; outras, alcoóis frios, febris; noutras e não são poucas, o pregão da cobiça mostra-se nos letreiros de aluguel. As janelas mouriscas escondem apriscos da luxúria breve. O número 188 não repõe uma lembrança grata; toda a frente foi restaurada, a bem do barroco; mas as acomodações internas ofuscam com o verniz dos lambris. Ao aroma do glacê, expõe-se uma talha onde se lembra que ali fora o Ateliê Bajado.


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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