sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012



Sandices vernaculares

* Por Jair Lopes

Continuando com minha saga de destrambelhos e necedades que batizei de sandices, hoje vou fazer um passeio desconchavado e sem noção pela língua pátria, beliscando aqui e ali suas nuances e bizarrices. Lá no primeiro ano de escola, quando pela primeira vez enfrentávamos a professora que nos ia tirar do obscurantismo analfabético que deprime e acabrunha, tomávamos contato com tal língua portuguesa. Idioma que nos foi legado pelos “descobridores” colonizadores portugueses e o qual nós demos uns toques especiais de modo a torná-lo menos “duro” e engessado. Nossa língua pátria, o velho e bom português, sofreu aqui nos trópicos, emendas, remendos, adições, supressões, flexões, empurrões e avanços os quais o deixaram com uma cara mais brasileira e menos lusitana, ficou mais ágil também. Mas é e continua sendo a língua alcunhada pelo poeta de última flor do Lácio. Não adianta vir com conversinha afirmando que lá nas Ibérias eles falam um idioma e aqui neste Novo Mundo costumamos nos comunicar em outro. Léria.

O bisonho aluno de primeiras letras usava uma cartilha que, como primeiro ensinamento, apresentava as cinco vogais e, em seguida, o abecedário que o novel era obrigado a decorar. Feito isso, lá vinha a formação das primeiras sílabas: ba, be, bi, bo, bu. Em seguida: ca, ce, ci, co... e parava aí, “cu” era tabu, não podia ser pronunciado nas pasteurizadas salas de aulas daqueles tempos. Ô tempinho pudico!
Depois que a dedicada professora (no meu caso era dona Nair Scheröder), com paciência infinita, incutia, através dos olhos e ouvidos, no fundo das cabeças duras de seus alunos todas as sílabas, passava à formação de vocábulos, os primeiros eram os nomes, naqueles tempos chamados compulsoriamente de substantivos. Vinha uma ladainha chata e cansativa de: próprios e comuns, simples e compostos, primitivos e derivados, reais e fictícios etc. Haja decoreba! Tratava-se de decorar – repetir dezenas de vezes até conseguir reproduzir o texto - como letra de música, tudo que era necessário para alfabetizar-se. Hoje esse jeito de ensinar as primeiras letras é muito criticado pelos neo-sábios, mas o método Kumon faz exatamente isso e alcança resultados surpreendentes, então é caso de se rever se decoreba tem ou não valor. Aliás, já li uma notícia que no Reino Unido está sendo reimplantada a decoreba porque um estudo sério provou que é producente, talvez o “seu” Kumon já soubesse disso quando desenvolveu seu método. De qualquer forma, com ou sem decoreba, não lembro que algum aluno do primeiro ano d’antanho tenha deixado de se alfabetizar. Hoje com toda essa modernidade há relatos que alunos chegam ao quarto ano fundamental sem saber ler e escrever. É incrível, mas a verdade verdadeira é que o ensino deve ter dado alguns retro passos nesse ínterim. Lamentável sob todos os aspectos.

Pois bem, incorporados ao acervo mental os substantivos, tínhamos posto o pé no primeiro degrau de uma escada de dez degraus. O passo seguinte era conhecer os adjetivos, segunda classe gramatical das palavras. São dez as classes: substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, pronomes, artigos, preposições, conjunções, numerais e interjeições. E elas eram introduzidas nas mentes quase virgens numa sequência indolor e passiva, dificilmente havia rejeição a esses implantes.

Tão logo as palavras eram compreendidas, afloravam à mente significados! Sinceramente? Era uma espécie de eureca que abria uma portinhola para o mundo, o idioma tornava-se a chave mestra dos mistérios da escrita, que coisa maravilhosa! Então, já sabendo ler, o néscio da véspera (meu caso) adentrava aquele universo da palavra escrita e se atolava em textos muitas vezes enigmáticos (a falta de vocabulário é que os tornava misteriosos), mas extremamente atrativos quase sempre.

A passagem por todas as classes gramaticais habilitava ao aluno “saber ler e escrever”, ou seja, deixava de compor número nas estatísticas de analfabetismo do Ministério da Cultura. Mas isso não significava que seu futuro vernacular e literário estava garantido, para isso precisa de um estímulo que o fizesse pegar gosto pela leitura. Quem teve esse empurrão e gostou, garanto que vê a língua portuguesa com bons olhos e se vale dela para adquirir mais conhecimento. O idioma não é jurado que culpa, juiz que condena nem verdugo que executa, o idioma é luz que alumia caminhos que de outra forma jamais seriam encontrados e trilhados. A língua, tal como a lanterna de Diógenes, é uma ferramenta que permite encontrar a saída do túnel da ignorância por mais oculta que esteja.

O aprendizado do idioma permitia, então, que se fizesse incursões em todas as áreas do saber, contudo, não só isso, o domínio da leitura leva a atitudes críticas que permitem entender as entrelinhas e as mensagens subliminares, o alfabetizado que preza os livros torna-se um agente ativo da cidadania consciente.

Depois que se ascende a níveis médios de ensino, o aprendizado da língua ao invés de diminuir, se intensifica. Agora surgem das tenebrosas sombras gramaticais as famigeradas figuras de linguagem que parecem um desfile de horrores para os pouco iniciados: Aliteração, assonância, paranomásia, elipse, zeugma; polissíndeto, silepse, anacoluto, pleonasmo, anáfora, antítese, ironia, eufemismo, hipérbole, apóstrofe, metáfora, metonímia, catacrese, perífrase, sinestesia, barbarismo solecismo, ambigüidade, cacófato e outras bizarrices mais. Quanto mais se estuda mais se encontra abscessos, vieses, exclusões, aberrações e convoluções escusas que nos atacam a cada esquina que se dobra, é um perigo.

Aforante as armadilhas vernaculares que sempre estarão à espera de qualquer de nós que se aventure pelas leituras, mas, principalmente pela escrita, o idioma português é riquíssimo, versátil e fascinante. Quem já não se comoveu ao ler texto bem escrito de autor famoso? Sem contar que um razoável domínio do vernáculo facilita a compreensão das demais matérias sejam correlatas ao idioma ou não, até a matemática, que não é uma aparentada do português, torna-se de mais fácil entendimento.
A pontuação, concordância, acentuação, ortografia, semântica e todos os macetes que aprendemos nas escolas, só se consolidam e passam a fazer parte de nosso cabedal, se os usarmos, isto é, se nos habituarmos a ler e escrever. E, claro, não custa lembrar que Fernando Sabino dizia: “Só se aprende escrever, escrevendo”. É isso aí.

• Escritor

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