quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012







Quarta-feira feira de cinzas e a Gorda

* Por Marco Albertim

No meio da Ladeira da Misericórdia, ela olhou para trás; apoiou-se na parede de uma das casas, sentindo falta de um corrimão. Da altura, ajuizou com precisão o ralo vaivém nos Quatro Cantos. Apreciara, nos quatro dias, a carneação pagã de moços imberbes, gays e lésbicas nutrindo-se na alforria própria. Ouviu um acorde de frevo, som vivo, sem cedência aos agouros do último dia. Deu-se conta da alegria fugidia, e moveu-se para frente. Passos pesados, medidos. Vestira bermuda de seda grossa, de um azul ralo, com furos invisíveis, filtrando a escassez do vento; blusa da mesma cor, mesmo algodão.
O Bacalhau do Batata acampara com estridência, no largo do Alto da Sé. Quis apressar os passos; não cruzaria as pernas feito um brincante fogoso, mas sacudiria os braços dando azo ao bulício do juízo. Nas calçadas, alívio, mas os degraus entre uma e outra de cada casa, um calvário. Em frente à Igreja da Misericórdia, sentou-se na balaustrada; as costas se refrescaram no vento soprado do sudeste. Tirou proveito das minúcias do barroco da igreja; nunca reparara na conversa muda entre as curvas das portas e janelas e o passeio das nuvens.
Súbito, só o vento assobiou nos seus ouvidos. O Bacalhau do Batata emudecera, surdos e clarins mudos! Levantou-se; as pernas endureceram, os passos sem temer a ingremidade do chão. Em frente ao elevador da Sé, viu Natalício; tão bojudo quanto ela, inda que com as pernas finas. Ainda com a blusa florida, o chapéu em forma de cone, cumprimentou-a com alegria curta.
- Gorda! Chegou adiantada para a Quaresma e atrasada para o Bacalhau.
A ladeira cavoucara o estômago. Resolveu, a Gorda, comer acarajé. Sentados num comprido banco de madeira, assuntaram sobre os quatro dias. Tão entretidos nas lembranças, comeram a fritura sem dó do fígado, dos intestinos. Os dois da mesma idade, 48 anos; casados e com filhas.
- A Ritinha? – quis notícias da filha de Natalício.
- Destampou o cabaço no carnaval...
- Como é que você sabe!?
- Saiu no sábado, voltou na segunda-feira. Em vez de pregar na cama, correu para o banheiro. Lavou o corpo, livrou-se das quizilas e enxaguou a calcinha. A mãe desconfiou, olhou pra ela... E Ritinha só fez baixar a cabeça.
Os sinos da Sé soaram; mesmo perto, não abafaram o vozerio residual do largo. A Gorda olhou para a igreja, viu o adro dar passagem a beatas com véus sobre os ombros, as cabeças; poucos homens, todos com os sentidos embotados às urgências das ladeiras. A Gorda não se imiscuíra no fuzuê dos becos, mas sentiu ingratidão com os santos por não ter balbuciado uma reza para, em troca, ter o benefício da purgação.
Cada um deu conta de sua despesa, sem culpas nem remorsos pelo pouco caso a agrados fingidos. Levantaram-se sem dizer para onde ir, posto que o juízo dos dois há muito tinham se acumpliciado a escolhas de ruas sem a menção de nomes.
Na esquina da Sé, a Gorda lembrou-se de sua mãe ajoelhada no adro, na porta da igreja, orando por si e para os santos, jurando jejuar por todo o dia. A velha morreu num domingo de carnaval, interditando os passos da filha na catação de blocos; dera tempo só de acompanhar O Cariri, na madrugada do Guadalupe.
Custa nada também orar; orou no mesmo canto onde a mãe pegara no costume; orou e não evitou um calafrio com a suspeita de que também morreria num domingo de carnaval.
Natalício, com outros urdumes, quis conversar com Pai Edu. O babalorixá cobrava pela consulta. Edu não se poupara de pingas; no rosto, tão tisnado quanto os pixains altos, cheios, os olhos eram dois lumes; vodum vivo, com promessas de castigos.
- Já sei de tudo... – disse a Natalício, debruçado no parapeito da janela de seu palácio.
- O quê!?
- Ritinha destampou o cabaço.
- E como soube?
- Em conversa com o pai de santo...
A Gorda terminara de rezar. Acenou para o Pai Edu. Desceu a ladeira, dando tempo de ouvir:
- Tá fazendo falta nas cerimônias.
Na Praça da Preguiça, inquiriu a um e a outro sobre o rumo do Bacalhau do Batata.
Resolveu cortar o caminho pela praça vizinha, nos fundos do Posto de Saúde. As barracas de bebidas, ainda desovando o que sobrara nas prateleiras, nas cozinhas. O Bacalhau estava na avenida, ouvia-se o estrépito da orquestra. A Gorda, ao passar em frente à barraca da esquina da rua do acesso à avenida, reparou numa bandeira vermelha, encarnada e sob a mira de seus olhos pasmos. O desenho luzidio de uma foice e um martelo; embaixo a costura da palavra comunismo, nunca pronunciada pelo arcebispo na missa.
- Cruz-credo!
Benzeu-se e saiu correndo.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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