quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012







O maior mendigo

* Por Pedro J. Bondaczuk

O homem, quando se guia só pelos instintos e se deixa levar por seu latente egoísmo, é, de todos os animais, o mais feroz e o mais cruel. Não fosse assim, não haveria extremos, em termos de posses. Não existiriam fortunas pessoais absurdas, de tão grandes, maiores do que a de países inteiros e, no outro extremo, pessoas sem teto, esfarrapadas, sujas e mendigando um reles prato de comida ou, na pior das hipóteses, uma dose de bebida alcoólica para tapear uma fome crônica e insaciável. Há, todavia, milhões destas criaturas, mundo afora, encaradas com indiferença tanto pelas autoridades, às quais compete lhes dar assistência e proteção, quanto pela população.


Numericamente, há muito mais carentes, que não têm sequer certeza de obter o almoço de cada dia (por frugal que seja) do que os que não precisam se preocupar com as incertezas da existência. E a cada dia, novos contingentes vêm se juntar a essa multidão de zumbis, de indivíduos sem esperanças e sem futuro, carentes de tudo e de todos, que buscam a mera sobrevivência física, assim mesmo na base do puro instinto. O homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais insensível dos animais?


Milhões, mundo afora, têm apenas as ruas das cidades como lar. Indigentes não faltam, portanto, cada qual mais desvalido do que o outro numa surreal competição pelo troféu de miserável dos miseráveis. E, no entanto, essas pessoas são dotadas de inteligência, sentimentos, sonhos e esperanças. Ou, pelo menos, um dia foram. São, como nós, feitas “à imagem e semelhança de Deus”. Comete, pois, sacrilégio quem, por ação ou omissão (não importa) permite que alguém se degrade a esse ponto e permaneça em degradação.


Onde estão os que apregoam por aí o desejável (ou meramente hipotético?) “reino do céu”, mas que se omitem diante das necessidades mínimas, porém inadiáveis e prementes, de tantos dos seus semelhantes? Onde o senso, já não digo de justiça (pois deste o homem não pode se vangloriar de ter, pois não tem), mas de caridade e de fraternidade, pregado há mais de dois mil anos por Jesus Cristo (traído e morto por aqueles a que pretendia despertar a voz da razão)? O homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais insensível dos animais?


Qual seria o maior dos miseráveis, o desprovido de absolutamente tudo, principalmente da motivação para sobreviver? Conheci, anos atrás, em Barão Geraldo, uma pessoa que se estivesse viva seria séria candidata a esse deprimente título. Nunca a vi sóbria uma vez que fosse. Perambulava, trôpega e anestesiada, pelos bares do distrito a implorar por uma dose de cachaça e algum salgadinho para matar a fome. Nunca deixava de conseguir. Sempre aparecia alguém que, para se livrar do seu assédio, lhe pagava a tal bebida, se julgando, certamente, por isso, o supra-sumo da generosidade.


Vários moradores davam-lhe restos de comida, como se alimentassem algum cão vadio, e assim nosso personagem ia sobrevivendo. Dormia onde suas pernas o levassem. Às vezes, em casas em construção, outras, na soleira dos estabelecimentos comerciais, de onde era, invariavelmente, enxotado, como animal pestilento, pelo dono, quando, de manhã, abria as portas para o público. Cheirava mal à distância. Pudera! Há tempos que não sabia o que era um banho.


Não sei que fim esse indigente levou. O fato é que, lá um belo dia, ninguém mais o viu. Certamente, morreu à míngua e foi sepultado, anonimamente, em alguma cova rasa sem identificação ou teve o corpo doado à Faculdade de Medicina, quem sabe. Soube, depois, que esse farrapo humano havia sido famoso jogador de futebol (reservo-me o direito de não o identificar, para preservar, pelo menos, sua memória). Ninguém jamais soube explicar as razões de uma queda tão grande e abrupta, para que chegasse a esse ponto.


Onde estavam os seus parentes? Onde os dirigentes dos clubes em que jogou? Onde os que se confessavam seus “amigos” e os tantos que se diziam seus admiradores? Por que deixaram esse ser humano, “à imagem e semelhança de Deus”, chegar a tal ponto de degradação? Onde as autoridades que não o recolheram a uma instituição do Estado, para lhe assegurar um mínimo de dignidade? Onde os líderes religiosos?


Escrevo estas linhas rilhando os dentes, decepcionado e amargurado com a minha, com a nossa condição humana. E a trajetória desse indigente, infelizmente, não é nenhuma exceção, mas a regra. O homem é, pois, ou não é o mais feroz, o mais cruel e o mais insensível dos animais?


Volto à pergunta: qual seria o maior dos miseráveis? É o poeta Rabindranath Tagore que responde: “O homem que precisa mendigar amor é o mais mísero de todos os mendigos”. Ocorre que todos nós praticamos este ato de mendicância. “Compramos” afeto e raramente o conquistamos. Reflita sobre essa afirmação e responda: Tagore tem, ou não, razão? Não seríamos todos nós, incapazes de nos doar, minimamente, ao próximo, sem que essa autodoação envolva algum interesse, os mais míseros dos mendigos? Desconfio que sim!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. No geral somos bestas-feras, animais que se dizem racionais. Mendigar amor é a mendicância mais dolorosa. Deveríamos doar atenção de forma espontânea, porém, damos com uma mão e esticamos a outra para receber. Somos sim, crueis, porém negamos isso até a última gota.

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