quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012







Morte e vida de rato

** Por Mara Narciso


O seu Januário não sai mais só. Os filhos guiam seus passos nas suas precisões. De andar inseguro e trôpego, está lúcido, porém, os olhos embaçados vagueiam perdidos, mostrando não se interessar sobre o que falam a seu respeito, suas doenças e remédios. Como o seu andar, aos 85 anos seus dias rastejam preguiçosos. Não há nada a fazer ou a esperar. Não acontece nada. Os dias são miseravelmente iguais. É invisível para os demais, que o ignoram. Quando balbucia, num esforço, não o deixam falar, e se consegue dizer algo, sua opinião é desconsiderada.
Lavrador de profissão trabalhou debaixo do sol fervente do norte de Minas durante seis décadas. Agora as pernas e a memória o traem. A mente ordena gestos e ações, mas o corpo titubeia, o pulmão resfolega, e o movimento é hesitante. Os filhos mostram os papéis, os exames, as receitas. A lentidão é a sua doença. Responsabilidade do tempo que já deteriorou todo o sistema.
Viúvo de semblante apático, há dez anos parece triste, - ou seria indiferença? O único gosto que tem é fumar seu cigarrinho de fumo de rolo. O forte odor acre-doce exalado do seu corpo acusa essa verdade. Nem ele e nem ninguém acha importante largar o vício. Então fica como está. A esposa morta bebia cachaça. Quando estava sob efeito etílico dizia que ia se matar. Na casa da fazenda, de vez em quando se viam ratos cruzando a sala, e rápidos riscavam de um quarto ao outro. O veneno chamado “chumbinho”**era espalhado por lá. Os roedores davam sossego por um tempo. E foi assim, até a velha senhora, alcoolizada, ingerir o veneno e se auto-exterminar. Seu Januário enviuvou-se e entristeceu para sempre. Também foi definitiva a sua melancolia. Murchou o quanto conseguiu no peso e no rosto, que ficou chupado. As roupas dançam na sua silhueta caquética. Desde então, pouco falante, emudeceu. Passa o tempo em casa, amuado num canto, escondido nas sombras do quarto escuro. Vida de rato, sem a agilidade deste.
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A chamada adolescência é tempo efervescente de escola, festa, música e alegria. As primeiras paixões acontecem, o desbravamento do mundo desconhecido tem muito de mágica, de sonho, de idealização. Costuma ser a melhor parte de vida de meninos e meninas. Isadora, aos 14 anos, também teve seus sonhos. De família pobre, sonhava com uma oportunidade de ganhar dinheiro, mudar de vida, de cidade, ir para longe viver outra realidade. Precisava de apoio para estudar e se empregar. Eram duas irmãs. Isabella era a outra menina. Tinha oito anos. A mais velha irritava-se com as proibições da mãe, que implicava com seus namoros. Dava conselhos e vinha aquela falação que as mães têm. Repetem até as filhas decorarem. Quanto mais falam, menos são obedecidas.
A menina não aceitava o sermão e escapulia dos olhos dela, indo namorar do outro lado da cidade. Foi descoberta e uma vez levou uns tapas. As ameaças foram sérias, mas no outro dia lá estava Isadora, naquele namoro chegado, como era costume de se dizer quando o sexo estava prestes a se consumar.
A próxima etapa estava anunciada. A gravidez aconteceu e a criança nasceu quando Isadora fez 15 anos. Ela não gostou do parto. Fácil não foi. Depois, sendo ainda quase uma criança, foi obrigada a cuidar da outra. Mesmo com a ajuda da mãe, desesperava-se por ter de lavar a própria roupa e a do neném. Além de dar o peito de instante a instante, noite e dia. Tentou voltar às aulas, mas um dia, ao chegar da escola, achou o filho chorando aos berros no berço. Estava só. Achou estranho. Correu ao outro quarto e encontrou a mãe morta no chão. Ao lado do corpo estavam alguns granulados de “chumbinho”. Nenhuma palavra de despedida. O motor do suicídio poderiam ter sido ciúmes incontroláveis. A mulher contava 35 anos. Deixou as filhas com 15 e 9 anos, um neto de colo e o viúvo com 36 anos. Vida ruim para os quatro sobreviventes. Vida de ratos?

*O carbamato Aldicarb é substância agrotóxica e praguicida, cujo nome comercial é Temik150® e popularizou-se como raticida. Usado em tentativa de suicídio, mostra 50% de êxito por insuficiência respiratória.

**Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

4 comentários:

  1. Humanos e ratos ligados por um mesmo não-sentido de viver. Duas vidas, tão diversas e ao mesmo tempo tão parecidas. Parabéns por este texto rico em interpretações, Mara.

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    1. Conheci essas duas pessoas no mesmo dia, e em comum o suicídio pelo chumbinho. Quem se vai, sabe dos seus motivos, e quem fica sofre mais do que quando a morte é natural. Obrigada pelos cumprimentos.

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  2. Será que outro jeito não havia? A vida por mais difícil que possa se tornar, é uma dádiva.
    Quero aproveitar Mara para lhe agradecer pela
    cumplicidade e boa vontade em sempre comentar meus textos e poesias.
    Abraços

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    1. Núbia, vir ao Literário e comentar é um prazer. Gosto de vários estilos e o seu é um deles.
      Fala-se pouco em suicídio. Não sei se acabar com a própria vida é ato de coragem ou de covardia. Muitos pensam nisso, e alguns concretizam.
      Obrigada por comentar.

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