quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012



Histórias de vida

O escritor Max Aub afirmou, em certa ocasião: “Há três categorias de homens: os que contam a sua história, os que não a contam e os que não a têm”. Não sei em que contexto ele fez tal afirmação, que me soa, à primeira vista, dogmática. Concordo com as duas primeiras proposições, mas discordo da terceira. Em qualquer contexto que ele tenha escrito isso, ela se mostra nitidamente incorreta.

Todos, absolutamente todos têm sua história, não importa a intensidade, duração ou interesse. Se estas interessam, ou se tais indivíduos têm capacidade de narrá-las, são outros quinhentos. A maioria não se interessa ou não tem condições mínimas de preservá-la para a posteridade. Aliás, são justamente os que integram essa imensa massa humana, despersonalizada e anônima, que se transformam em personagens preferenciais nossos, escritores, que dão vida e personalidade aos nossos contos, novelas, romances, quando não peças teatrais e roteiros de cinema.

O próprio Max Aub, ao que me consta, nunca escreveu sua biografia. Nem por isso deixou de narrar suas experiências pessoais. Claro, “travestido” em inúmeros dos seus personagens, cada um deles com um “pedacinho” de suas características individuais, suas idéias, experiências, emoções etc. Bem que sua vida daria um alentado romance, e dos mais interessantes, posto que haja pouquíssimas referências a seu respeito. Sei dele muito pouco. Mas o que sei, me interessa sobremaneira.

Por exemplo, mesmo havendo nascido na França, mais especificamente, em Paris, no ano de 1903, todas as fontes que consultei dizem que sua nacionalidade é espanhola. É verdade que, quando tinha onze anos, em 1914, quando da eclosão da Primeira Guerra Mundial, mudou-se, com a família, para Valência, onde estudou e deu os primeiros passos na carreira de escritor. Viveu por pouco mais de vinte anos nessa cidade. Ressalte-se que nem seus pais eram espanhóis. O pai era alemão e a mãe francesa.

Ocorre que Max Aub era de descendência judia. E quando o general Francisco Franco assumiu o poder na Espanha, esse fato contou, e muito. O ditador espanhol, como se sabe, era ferrenho adepto do nazifascismo e contou, inclusive, com ajuda militar de Adolf Hitler para vencer a guerra civil em seu país – basta que se lembre do bombardeio aéreo que destruiu a cidade de Guernica, destruição essa celebrizada e imortalizada pelo pintor Pablo Picasso, numa de suas mais conhecidas telas – e seu regime, entre outras coisas, se caracterizou por sistemática perseguição à comunidade judia.

A ascensão do truculento “generalíssimo” forçou o escritor a refugiar-se na França, sua terra natal. A permanência da sua família em território francês, no entanto, seria breve, e por motivos até mais prementes do que aqueles que determinaram sua fuga da Espanha: a ocupação nazista. Para não vir a parar em algum campo de concentração e não ser morto em alguma câmara de gás, tornou a emigrar. Desta vez, porém, para um país bem distante do teatro de guerra, que não estava envolvido no conflito, ou seja, o México.

Max Aub viveu na capital mexicana o resto da vida, até 1972, quando morreu, aos 69 anos de idade. Portanto, se o critério para lhe atribuir nacionalidade não for o do nascimento, não é correto afirmar que seja espanhol. Neste caso, seria mais lógico considerá-lo mexicano. Viram como apenas um ou outro retalho da sua vida suscita a composição de uma história, com todos os ingredientes de movimentada novela, quando não de um dramático romance?

Max Aub é pouco conhecido no Brasil. Apenas alguns restritos círculos literários tiveram acesso à sua obra. Não me consta (embora, óbvio, eu possa estar equivocado) que algum dos seus livros tenha sido traduzido para o português. É verdade que a Espanha, a despeito de ter fugido de lá em circunstâncias tão prementes e dramáticas, causou profunda impressão em seu espírito. Tanto que, além de declarar sua nacionalidade como sendo espanhola, tudo o que escreveu referiu-se a esse país.

Sua principal obra literária é um conjunto de cinco romances, cujo título original é “El laberinto mágico”, e cujo foco é a Guerra Civil Espanhola. Mas, fechando este inusitadamente extenso parêntesis e retomando o tema central destas reflexões, reitero minha contestação à declaração de Max Aub de que muitas pessoas não têm história. Todas têm. É certo que algumas são monótonas e inexpressivas. Ainda assim... são histórias.

Tome, por exemplo, um indigente que perambule pelas ruas da sua cidade, sem teto para se abrigar e dependendo da caridade pública para obter sua ração diária de comida. Aparentemente, esse sujeito não interessa a ninguém (pelo menos não às autoridades, que têm a obrigação de lhe prestar amparo). Alguns podem até apiedar-se da sua situação, mesmo que não façam nada para mudá-la para melhor. Para outros tantos, sua vida e circunstâncias são indiferentes. Para muitos, ele é um incômodo e existem até (e não poucos) os que sentem repulsa com a sua presença.

Só que esse indigente, certamente, não nasceu nessa condição de extrema miséria (material e espiritual). Posto que anônimo, tem toda uma história de degradação que, em mãos competentes, produzem enredos dignos de Prêmio Nobel de Literatura. Claro, o correto a fazer não é escrever a seu respeito, ou não só isso. É prestar-lhe assistência para proporcionar-lhe vida minimamente digna. Raros têm a sorte de encontrar alguma mão amiga em circunstâncias tão extremas.

Mas que nosso hipotético indigente tem história, não dá para negar. Como ele, tantos outros infelizes, que compõem a imensa massa humana dos anônimos, dos que um escritor peruano (cujo nome me foge à memória) chegou a caracterizar como “invisíveis” de tão pobres que são, também têm. E esses “enredos”, em termos de interesse, superam, não raro, as mais badaladas (e via de regra mentirosas ou no mínimo exageradas) biografias de reis, presidentes, cientistas, artistas, astros do esporte etc.etc.etc.

Boa leitura.

O Editor.



Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Um comentário:

  1. "A hora da estrela" conta a história de uma mulher, Macabéa, que não tem nada a contar e ainda assim Clarice Lispector conta. Até as rotinas mais miseráveis, sem glamour, e medíocres podem gerar enredos. Tudo é história, até a falta dela.
    Quanto a Max Aub não seria ascendência judia?

    ResponderExcluir