quarta-feira, 25 de janeiro de 2012







Estética de cemitério

* Por Mara Narciso


Hoje comprei o terreno onde está enterrado meu pai. O local descuidado estava cheio de flores campestres amarelas, nascidas ao acaso, e apenas sobre ele estava assim. Olhei em volta, e observei muitos canteiros sobre túmulos, com grama e flores, além da cabeceira em mármore ou granito, com inscrições e fotos. Escolhi grama esmeralda e uma cruz de bronze, em preto com as datas em branco, para marcar o lugar onde meu pai está. E só. Do meu ponto de vista não é preciso fazer mais do que isso.
Um amigo meu, que foi comigo ao cemitério para me dar força, falou que foi bom ter feito isso, pois alguém poderia ver o túmulo e questionar estar meu pai em terras públicas, e após três anos, não mais. Mas, ao contrário de mim, ele achava que eu deveria enfeitar o túmulo. Talvez plantar flores ou colocar uma pedra com a foto. Argumentei que ninguém havia visitado meu pai em sua longa doença de cinco anos e três meses. Morto há dois anos (27 de janeiro de 2010), parece-me impossível uma visita agora. Eu o visitei três vezes depois de morto. Fui com meu filho, que sabe de cor onde ele está sepultado. É junto ao muro, perto do portão entre os dois cemitérios, o Bonfim e o Jardim da Esperança. Ambos estão lotados. Não há lugar para mais ninguém.
Os dois cemitérios de Montes Claros são lado a lado. No Bonfim há túmulos grandiosos, com esculturas e capelas, lápides monumentais e toda uma estética de morte, luto e tristeza. No outro, Jardim da Esperança, visto como um parque ou jardim, apenas canteiros singelos, com cabeceiras de pedra, e as fotos dos mortos. São visões diversas do modo de enterrar. Minha mãe está no primeiro e meu pai no segundo.
Não tenho aversão alguma a cemitérios, e não vejo nada de mais em trabalhar lá. É preciso que haja quem ajude a nascer e quem ajude a morrer, e depois disso enterrar, mesmo com a tendência atual, até pela falta de espaço, de cremar os mortos e jogar suas cinzas ao mar, ou, no Rio São Francisco.
Na ida, soube que tinha acontecido um acidente grave, na estrada para Belo Horizonte, pois duas ambulâncias do SAMU tinham passado em disparada. Ao chegarmos ao cemitério, soube que a equipe de resgate do primeiro desastre tinha sido atropelada por um caminhão de bois, matando um soldado do Corpo de Bombeiros. O administrador do cemitério tinha ido ao local do sinistro em busca de informações para saber se mais covas teriam de ser abertas no campo santo apinhado e sem espaço. Cada um em seu metier, mas, pelo número de mortos (quatro), um problemão teria de ser resolvido, pois o novo cemitério, do outro lado da cidade, ainda não está operando.
Contratei o serviço de feitura do túmulo ao vigia do cemitério, que faz os jardins e mantém os canteiros a um custo mensal. A esposa dele cuida dos gramados e flores. Enquanto isso, olhando em volta filosofei, analisando os enfeites de lá. Para não murchar, muitos optam por flores de plástico. A minha mãe as detestava, e as achava de mau gosto. Os Titãs as cantaram “as flores de plástico não morrem”. Em cada canto se via flores artificiais, cujas cores berrantes tinham sido esmaecidas pelo tempo. É preciso ficar atento e colocá-las simples, para que não sejam roubadas.
Arrumar um túmulo não tem efeito algum sobre quem já partiu. Apenas quem ficou tem a sensação de missão completa. Foi o que pensei. É preciso dar o necessário para quem está velho e cumpriu sua trajetória de trabalho. Em vida. É bom que se dê um fim digno a quem trilhou o caminho da honestidade. Mas o serviço precisa ter um ponto final, e o meu foi dado hoje. Emocionei-me. Enfim, seu Alcides, descanse em paz!

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-

6 comentários:

  1. O assunto cemitério eu domino Drª Mara... Presto serviços aqui em Goiânia no primeiro Cemitério da Capital, que hoje é tombado como Patrimônio Histórico. Tem as características parecidas com aquele mais suntuoso que você citou, por isso, visualizei com clareza a paisagem descrita. Gostei muito quando declarou "Não tenho aversão alguma a cemitérios, e não vejo nada de mais em trabalhar lá. É preciso que haja quem ajude a nascer e quem ajude a morrer, e depois disso enterrar...". Existe uma discriminação enorme aos funcionários encarregados de tão difícil tarefa, assim como, a figura do coveiro era estigmatizada naquele velho desdentado, coberto de terra e sem qualquer cultura. Aqui, onde trabalho, temos coveiros que possuem curso superior e, recentemente, fundamos o Sindicato dos Trabalhadores nos Cemitérios (SINEF/GO), do qual sou conselheira. Estamos em luta pelo respeito e valorização da categoria. Sua crônica serviu-me de incentivo.
    Abraços.

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  2. Nada tenho contra os profissionais "dos que já se foram", é um serviço necessário.
    Aqui no Rio alguns cemitérios estão em péssimo estado, tumbas reviradas, ossos espalhados e um ou outro funcionário bêbado. Acho que o que falta é o que disse a Marleuza, um sindicato sério voltado para a valorização desse profissional.
    Abraços Mara.

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  3. Ainda que ao verdadeiro interessado seja indiferente, é natural sua preocupação e e sua sensação de missão cumprida. Sei o que é isso porque perdi meu pai alguns meses depois que você perdeu o seu (embora o meu tenha deixado essas questões todas resolvidas muitos anos antes de sentir o primeiro sintoma de angina). Um grande abraço, Doutora.

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  4. Marleuza, vejo os trabalhadores de cemitério como uma função normal dentro da nossa sociedade, em que cada um cuida de uma parte. Uma greve de coveiros acaba logo, pois num momento de morte, todos têm pressa de acabar com a agonia. E deverão pagar o que pedem. É preciso organizar a classe para ser mais respeitada e valorizada.
    Núbia, imagino que haja cemitérios lotados e abandonados, a partir do momento em que os vivos que lá enterraram seus mortos estão mortos também. Então entra o poder público para desativá-los, pois daí não tem mais muito sentido. A posse da terra seria de quem mesmo? Difícil imaginar.
    Obrigada, meninas pelos comentários.

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  5. Marcelo, depois que escrevi o texto estou vivendo uma outra agonia. Imagine você que os documentos dizem que meu pai está enterrado na cova quatro, mas eu tenho certeza que ele está na cova três. A pessoa do túmulo ao lado dele foi enterrada uma hora após ele. São muito próximas e pelo que me filho e eu nos lembramos, é possível ter havido um equívoco. Estou agoniada porque a família da senhora ao lado não vai comprar o terreno. Caso os enterros tenham sido trocados mesmo, em um ano meu pai estará numa cova comum. O que fazer?
    Obrigada pela passagem carinhosa!

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  6. Mara, li sua resposta ao Marcelo e percebi sua agonia... No caso do seu pai, se há desconfiança de equívoco da cova, é preciso entrar com um processo na justiça para exumação fora do prazo de decomposição. Possivelmente será determinada coleta de material para exame de DNA e assim, proceder a regularização do endereço. Aqui em Goiânia, quando é cemitério público e a família não adquire o terreno, os restos mortais podem ser exumados (para doenças comuns - após 3 anos e doenças infecto-contagiosas - após 5 anos) e depositados num ossário comunitário. A cova desocupada serve para sepultamento de um novo corpo. O tempo de exumação depende da demanda dos municípios, respeitando, é claro, o prazo estipulado pelas Leis locais.
    Realmente preocupante o caso do seu pai...
    Espero ter contribuído para esclarecer e no seu município, pode funcionar de forma diferente.
    Abraços.

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