sábado, 19 de novembro de 2011



O álbum da família Pirroque

* Por José Ribamar Bessa Freire

Quem foi Pierre Pirroque? Poucos sabem. Nem sequer os seus colegas de trabalho - Braguinha e Euclides, o Bunda-de-Aço - ligavam o nome à pessoa. Se o seu Henrique, que era seu Henrique, chefe dos bedéis no Colégio Estadual do Amazonas, ignorava que tinha um subordinado com esse nome, imagine os outros!
Mas eu vos garanto que Pierre Pirroque, embora discreto e quase invisível, existiu, trabalhou trinta anos como bedel e, entre um gole e outro, serviu lealmente a Pátria com extrema dedicação, contribuindo na manutenção da ordem e da disciplina. Por isso, sua biografia interessa à posteridade.
Pierre Pirroque. Era assim que o chamávamos, nós, alunos de francês do professor Miguel Duarte, com quem aprendemos que “le lion est les roi des animaux”. O responsável por batizá-lo assim foi o saudoso Ilmar Faria, do Curso Clássico, turma da manhã, anos 60, que se limitou apenas a fazer uma tradução livre, inspirado no nome pelo qual o bedel era conhecido no bairro de Aparecida. Pierre morava na Rua Alexandre Amorim, vizinho do João Toledo, onde – aí sim – todos só o chamavam de Pedro Piroca, que era seu nome verdadeiro.
Nome é uma forma de dizer. Não era bem um nome, mas um desses apelidos, tipo Sarney, que ficam grudados em toda a família por várias gerações como uma maldição. Sua mãe, dona Maria Piroca, teve três filhos a quem legou o insólito sobrenome: Paulo Piroca, Pedro Piroca e Saulo Piroca, sendo o primeiro mais conhecido como Pirocão e o último como Piroquinha, não por razões anatômicas, mas pela ordem de chegada ao mundo. Pedro, o do meio, ficou simplesmente Piroca, sem sufixos.
Qual a origem desse nome? Na qualidade de único biógrafo de Pedro Piroca, procurei fazer uma pesquisa séria, coisa de profissional. Consultei minhas nove irmãs, mas até agora só duas delas responderam. Elisa tirou o loló da seringa: – “Tô fora! Não é da minha época”. Porém Gina, uma das mais sábias, que entende do riscado porque conviveu de perto com a família Piroca, refrescou minha memória:
- “Talvez o apelido tenha vindo do cabelo muito curto e do pescoço comprido da dona Maria. Ela vestia sempre roupa branca, usava tênis branco barato, daqueles antigos, que se limpava com alvaiade, mas achinelado atrás, por causa de um calo que nunca sarava. Andava, por isso, caxingando. Naquela época não havia máquina de lavar e ela tirava seu sustento indo de casa em casa, oferecendo seu serviço de lavadeira. Só trabalhava movida à cachaça: - Minha branca, me paga uma ‘esquenta’ – ela pedia. Isso é tudo que lembro, nebulosamente. A Glória deve saber mais, pergunta pra ela”.
Ainda não tive tempo de consultar Glória, minha irmã mais velha, mas se tu pedires, desocupado leitor, eu me comprometo a fazê-lo em nome da pesquisa científica, para que esse personagem histórico não caia no esquecimento. De qualquer forma, por enquanto, a explicação da Gina faz sentido, como comprova o Dicionário de Nheengatu de Stradelli, que registra a palavra piroca como um empréstimo do nheengatu ao português, significando, entre outras coisas: “pelado, depenado, descascado” (pg.608).
Por outro lado, meu sobrinho Pão Molhado, a quem dei uma bolsa de iniciação científica, jura que no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) estudou com duas irmãs gêmeas, já formadas – Dodora Piroca e Rosilene Piroca - que seriam bisnetas da Maria Piroca, não se sabendo se pelo lado do Paulo, do Pedro ou do Saulo. O Pão Molhado ficou de indagar.
Mas por que esse interesse repentino na biografia do Pedro Piroca? – pergunta o leitor. É que outro dia, dirigindo o carro, em plena ponte Rio-Niterói, liguei a Rádio Roquete Pinto, e a Nora Ney cantava uma música dos anos 50 de Luiz Bonfá:
“Vivo só sem você / Que não posso esquecer / Um momento sequer / Vivo pobre de amor / À espera de alguém / E esse alguém não me quer / Vejo o tempo passar / O inverno chegar / Só não vejo você”.
Foi ai que lembrei o meu primeiro porre aos 16 anos de idade. Com quem? Adivinha, leitor? Acertou. Foi com ele, o Pierre Pirroque, ao som de Nora Ney. Era um domingo ensolarado de 1963, às 10 horas da manhã. Voltava eu da missa, quando ao passar em frente ao bar Sputnik, na Epaminondas com a Monsenhor Coutinho, vejo lá dentro, solitário, sentado a uma mesa, o Pierre Pirroque, que me convida a tomar uma cerveja. Era a primeira vez que alguém me tratava como adulto. Aceitei. Quem recusaria?
O bedel que durante a semana controlava a disciplina e o comportamento, no domingo me convidava à transgressão. Tomei uma cerveja. Talvez duas. Tudo bem, não vou mentir, tomei umas três, ouvindo na vitrola do Sputnik a Nora Ney cantar um LP inteirinho, músicas como “De cigarro em cigarro”, “Dorme, menino grande, que eu estou perto de ti”, seguida de “Ninguém me ama, ninguém me quer”, “Tu passas pela rua, e a vida continua...” e outras músicas de fossa, boleros, samba-canção, etc.
A voz da Nora Ney, inconfundível, se tornara ainda mais conhecida nacionalmente depois de sua participação em uma intensa campanha política na rádio. Acontece que com a renúncia do Jânio, em 1961, os militares impuseram o parlamentarismo, fazendo o Congresso Nacional aprovar um Ato Adicional à Constituição de 1946, como condição para a posse do vice-presidente Jango, cujos poderes ficaram diminuídos. Depois da posse, Jango realizou um plebiscito, em janeiro de 1963, consultando os eleitores sobre o tema. Nora Ney e Jorge Goulart gravaram dois jingles que tocavam adoidado nas rádios:
- Eu vou fazer um x no quadrinho ao lado da palavra NÃO. Parlamentarismo NÃO, o povo tem razão, eu vou votar no NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO.
O outro completava:
- NÃO, NÃO está legal, o ato adicional, só trouxe confusão, parlamentarismo NÃO, o povo tem razão, eu vou votar no NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO.
Enquanto ouvíamos Nora Ney na vitrola do Sputnik, discutíamos política nacional e local, fofocas do Colégio Estadual e música popular brasileira. Pedro se queixou da tragédia de carregar o nome Piroca pelo resto da vida. Foi ai que eu comuniquei – ele não sabia – que a turma do Clássico só o conhecia como Pierre Pirroque. Ficou reconhecido com a homenagem: - Em francês, não soa pornográfico – disse, já bêbado.
Embora hoje não existam mais funcionários denominados de bedel, Pedro Pirroque foi um exemplo de dignidade para todos os bedéis do Brasil. Cumpriu seu dever, no exercício de suas funções, tirante os fins de semana quando tomava umas canas, afinal ninguém é de ferro, além do que tudo era responsabilidade do DNA da dona Maria. Suspeito que se não fosse eu, esse funcionário exemplar ficaria no eterno anonimato e sua passagem pelo planeta terra passaria em brancas nuvens. Por isso, deixo aqui esse registro para a posteridade.
E o porre? Bem, quando cheguei em casa trocando as pernas, mais pra lá do que pra cá, minha mãe me deu uma surra homérica. Sobrou pro meu pai: - Olha o exemplo que tu estás dando ao teu filho, menor de idade. Essa história do meu primeiro porre, como todas as demais, tinha que terminar assim. Afinal, o mundo dá voltas, a Lusitana roda, mas tudo acaba sempre na cachaça do Barbosa.
P.S. – Pierre Pirroque não é mencionado, mas o cenário onde ele atuou está finamente desenhado no livro “Gymnasianos”, de Osiris Silva (Editora Cultural, Manaus, 2011) que li de uma só tacada. Leitura imperdível para quem viveu aquela época e recomendável para quem quer mergulhar no mundo estudantil e político do Amazonas nos anos 1960.

Texto publicado em 6 de novembro de 2011 no Diário do Amazonas

• Jornalista

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