sábado, 19 de novembro de 2011







Modernidades

* Por Urda Alice Klueger

Criei-me no tempo do rádio, grandes rádios com o interior cheio de válvulas que apagavam e acendiam, que precisavam “esquentar”, e que, no meio de muita estática, traziam até nossas casas a Rádio Clube de Blumenau e a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, entre outras. Os rádios eram enormes, contidos dentro de grandes caixas de decoração rebuscada, e, apesar de serem popularmente chamados de “caixão-de-abelha”, eram, sem dúvida, a principal peça que compunha a sala-de-visitas de uma casa.
Lá por volta de 1960, porém, os rádios começaram a mudar. Foi uma verdadeira revolução nas comunicações e nos hábitos das pessoas, só comparável, creio, ao surgimento do telefone celular, 30 anos depois. O que aconteceu foi que surgiu o rádio a pilha.
Ter um rádio a pilha, na época, era questão de status, bem como foi o telefone celular nos seus primeiros dias. “Gente bem” tinha, obrigatoriamente, de andar com o seu rádio a pilha, quanto menor, mais chique, radinhos a pilha dentro de capinhas de couro marrom cheia de furinhos, com alças de couro que permitiam que fossem usados pendurados ao ombro. Era o começo dos tempos do consumismo no Brasil, e ter um rádio a pilha passou a ser ponto de honra, bem como aconteceu com o telefone celular nos seus primeiros tempos.
Muita coisa aconteceu no alvorecer da era dos rádios a pilha. Ouviam-se, na época, os jogos de futebol nos velhos rádios cheios de estática. Ou ouvia-se no rádio, ou ia-se ao estádio. Como se ter certeza se o locutor do futebol estava transmitindo o jogo fielmente? Com o rádio a pilha, foi possível conferir. E quem tinha um rádio a pilha, ia ao estádio com ele, e ouvia e via o jogo ao mesmo tempo, e depois podia apontar todas as falhas dos locutores. Esses conferentes viraram os donos da razão, com todo um círculo de pessoas a ouvi-los, boquiabertas por terem de desacreditar nos seus locutores de confiança.
O Brasil tinha sido campeão do mundo em futebol em 1958 – coincidindo com a chegada do rádio a pilha, esteve em Blumenau, para jogar com o Olímpico, nada mais nada menos que o Santos de Pelé. Com Pelé e tudo. Pelé, na época, só perdia para Deus em popularidade, e creio que isto não mudou muito ao longo de quase quatro décadas. Ver Pelé jogar no nosso campinho sujeito a enchentes tornou-se quase questão de vida ou morte para os blumenauenses de antanho e, quem pôde, foi ver o jogo. O Santos surrou o Olímpico por 8x0. E na manhã seguinte a fofoca corria solta na nossa rua. O problema não era ter perdido de goleada do Santos, claro que não, era quase uma honra perder-se por muitos gols para o time de Pelé. A grande discussão era a respeito dos donos dos rádios a pilha, que diziam que tinham estado no campo vendo o jogo, ao mesmo tempo em que ouviam a transmissão radiofônica nos seus radinhos, e que apontavam os muitos erros dos locutores esportivos emocionados com a presença de Pelé.
Até hoje não sei qual foi a verdade, mas alguns dos nossos vizinhos foram taxados de mentirosos. Dizia-se que fulano e sicrano tinham ficado era bem em casa, ouvindo o jogo pelo rádio, e que só para “aparecer”, para deixarem bem claro que possuíam rádios a pilha, tinham inventado aquela história de que tinham estado no campo conferindo o trabalho dos repórteres. Penso, hoje, que provavelmente toda essa encrenca derivou da inveja de moradores que morriam de vontade de ter ido ver Pelé e não o puderam fazer, coisa mesquinha em qualquer dos casos.
Nos seus primórdios, o rádio da pilha movimentou energias e opiniões. Mais tarde, quando já estava popular, virou companheiro e amigo. Meu pai deu-me um quando eu já era uma mocinha, moderno rádio com linda capa de couro preta e longa e flexível antena embutida, sofisticado rádio com três faixas de ondas. Eu dormia e acordavam com ele, e nele ouvia os Beatles e todos os sucessos da Jovem Guarda, e nele ouvi todas as notícias do Projeto Gemini, e, afinal, a chegada do homem a lua, em noite esquecida lá na minha adolescência. Usei aquele rádio em todos os momentos, até ele não prestar mais, e tenho certeza de que ele foi à coisa mais chocante que o meu pai podia ter me dado, depois da vida, é claro.
Essas modernidades do passado hoje são coisas sem valor, mas como alegraram e movimentaram a nossa vida na época!

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Ainda hoje só ando de carro de rádio ligado. Tenho montes de Cds e não os levo comigo. Meu negócio ainda é ouvir rádio. Também tenho um no banheiro e só tomo banho ouvindo-o. Nas refeições faço o rodízio entre a Bandnews TV(que chamo de Bad news) e o rádio. Os mais novos nem compreendem o que venha a ser isso. Confessar amor ao rádio é dizer que se está com mais de cinco décadas de vida.

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