domingo, 23 de outubro de 2011



O escritor dos extremos

A literatura russa, por uma série de razões (inclusive pessoais, mas, principalmente, por apreciar livros e autores de reconhecida qualidade) sempre me fascinou. Li os mais destacados autores nascidos naquele vasto país, como Tolstói, Puchkin, Gorki, Gogol, Mayakovski e tantos e tantos outros e, de cada um deles, extraí preciosas lições, sobretudo acerca do comportamento humano. Aprecio-os todos com o mesmo entusiasmo. Mas há um que se destaca em minhas preferências por sua genialidade. Trata-se de Fiodor Mikhailovitch Dostoievski.
Sua obra, entre outras virtudes, fornece preciosos subsídios ao estudioso de ciências políticas para que entenda o por quê da Revolução Bolchevique de 1917 e a formação da União Soviética. Mostra a desagregação da sociedade russa no período que a antecedeu, sob o regime czarista, não raro louvado por quem não conhece nada sobre esse período tenso e violento da história da Rússia.
Dostoievski mostra, com realismo e crueza, as injustiças e aberrações de uma elite alienada e que se julgava destinatária de um “direito divino” sobre as chamadas “massas”, mergulhadas na miséria e na ignorância. Analisa, ainda, o cristianismo sob um prisma realista, utilizado não como mera religião que prega a solidariedade e o perdão, mas como odioso instrumento de dominação.
Os livros de Dostoievski vão além desses aspectos sociais. Alcançam a alma das pessoas. Estuda sua psicologia, suas motivações. Apresentam tanto personagens que agem com supremo desprendimento (como o de dar a vida por um ideal), quanto os que se revelam “canalhas dos canalhas”, tomados por fúria homicida, insana e destrutiva. Identifica e confronta os dois instintos básicos do homem, o erótico e o tânico. O construtivo e o destrutivo.
Entre os personagens desse gênio da literatura mundial contam-se santos e criminosos, iluminados e possessos, homens de extrema honestidade e canalhas dos mais cruéis; sábios e idiotas. Para exemplificar, podemos citar o príncipe Muisdhkin, vivendo sua imbecil utopia. Ou as mulheres desvairadas pelo orgulho vazio e fútil, de várias de suas histórias. Ou de meninas como Mariocha, sacrificada ao tédio do possesso Stavroguin. Ou os nihilistas que, embora buscassem destruir as sociedades organizadas, para que cada indivíduo conduzisse, sem interferências externas seu destino, sonhavam com uma Rússia poderosa, soberana, livre e igualitária;
Da galeria de monstros e santos, criada por Dostoievski, fica a impressão que o escritor queria nos passar sua crença de que o ser humano apenas atinge o auge da nobreza e da grandeza quando expande os limites da humanidade na direção do anjo. Ou, em alguns casos, do demônio.
Chocante, por exemplo, é a “psicologia” do estudante Raskholnikov, que se torna assassino em “Crime e castigo”, quando chacina, a machadadas, a indefesa e avarenta velhinha, sua senhoria. O jovem cometeu essa atrocidade para se apoderar das economias da vítima. Seu pretexto era que, em tirando o dinheiro que a anciã economizara, ao longo dos anos, esses recursos seriam melhor utilizados por ele. Afinal, ele era um intelectual, com brilhante futuro pela frente e possibilidades de agir no sentido de tornar o mundo melhor. Já a anciã... Não passava de uma “ninguém”.
Afrânio Coutinho compara Dostoievski a Michelângelo Buonarroti. Argumenta que ambos deram, à figura humana, proporções aterradoras. Muitos entendem (sem nenhum fundamento científico), que a epilepsia do escritor, antes de ser um mal (e, evidentemente era), tratava-se de uma “vantagem “ sua, de detonadora das alucinações que o levavam a criar personagens tão trágicos (e, simultaneamente, tão grandiosos), mediante alguma suposta “misteriosa tempestade elétrica cerebral”. Claro que discordo disso.
Aliás, os gregos antigos classificavam a epilepsia, que os intrigava bastante, de “a divina moléstia”!. E Dostoievski, em vez de lamentar, tinha fascínio por suas crises epilépticas. A impressão que fica, caso a doença tenha, de fato, influído na sua literatura, é que esta talvez o levasse a penetrar recessos da alma inacessíveis e interditos às pessoas não acometidas por este mal.
Vladimir Nabokov, no livro “Lectures on Russian Literature”, no estudo sobre “Crime e castigo”, comenta: “Além disso tudo, as personagens de Dostoievski têm um outro traço marcante: através de todo o romance, elas não se desenvolvem como personalidades. Nós as obtemos todas completas no início da história e assim elas permanecem sem quaisquer mudanças consideráveis, embora seus ambientes possam se alterar e as coisas mais extraordinárias possam lhes acontecer”.
Mikhail Bakhtin discorda de Nabokov. Explica a criação dos personagens de Dostoievski pelo que denomina de polifonia: “O herói tem competência ideológica e independência, é interpretado como um autor de sua concepção filosófica própria e plena e não como objeto de visão artística final do autor”.
Nicolas Berdiaev fez um estudo profundo sobre Dostoievski e sua obra e chegou à seguinte conclusão: “Tão grande é a importância de Dostoievski, que havê-lo produzido é em si mesmo justificação suficiente para a existência do povo russo no mundo; e ele testemunhará em favor de seus compatriotas no julgamento final das nações”. Voltarei, certamente, ao tema.

Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Criar uma personagem não parece muito difícil. Caracterizá-la e fazê-la manter um comportamento coerente com as suas maneiras é bem mais complexo. Falamos bem da diversidade, mas não gostamos de convívio muito próximo com os muito diferentes de nós. Alguns podem ser engraçados, mas outras vezes se tornam perigosos. Conhecê-los pode inspirar boas histórias, mas conviver com todos os tipos é um desafio e tanto. Prefiro estar longe de boa parte deles.

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