sábado, 24 de setembro de 2011







Os Andes, o Salar e Susques

* Por Urda Alice Klueger



(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)

Fica bastante difícil passar para um texto o que é subir a Cordilheira dos Andes. A grandeza da natureza é tão inexplicável e tão indescritível ali no Passo de Jama, para onde seguíamos, que penso que sequer um filme pode mostrar o que se sente quando se está naquelas subidas como que ciclópicas, ínfimos insetos que somos diante da grandiosidade da Natureza. Eu aconselho a cada ser humano das Américas a um dia passar por tal experiência, para “sentir” na pele a grandiosidade do seu continente, e de repente, no meio daquelas grandezas infinitas, numa breve descida, vimos lá adiante como que uma imensa planície toda feita de neve, ou de chantili, ou sei lá o que pode ser tão branco. Instintivamente, cada harleyro foi diminuindo a velocidade enquanto a estrada começava a cortar aquela brancura sem mácula, aquela brancura que descobríamos feita de gemas que rebrilhavam ao sol. Um salar! Continuamos rodando até o centro daquele grande círculo, e então paramos todos junto à uma casa bem grande feita inteiramente de barras de sal, com todos os móveis e tudo o que uma casa tem também feito e esculpido em sal, e cercada por aprazíveis áreas para piquenique e esculturas, tudo de sal. Saltei ali sem querer crer no que os meus olhos viam – fui confirmar lambendo as paredes, as esculturas, as coisas que estavam por ali, para ter certeza de que não vivia uma alucinação. Turistas alemães também estavam ali a fotografar tudo e a tirar fotos com um argentino totalmente índio, que ganhava sua vida ali, a vender pequenas esculturas de sal que fazia. Jamais imaginara estar, um dia, num lugar assim – e como se formara tal lugar? Um dia, lá na aurora dos tempos, quando os continentes se separaram e as placas tectônicas foram se empurrando uma sobre a outra e começaram a formar o que é hoje a Cordilheira dos Andes[1], um mar que existia em algum lugar também foi parar lá em cima, há mais de 3.000 metros de altitude. Tantos milênios ficou aquele mar preso lá no alto das montanhas que toda a sua água acabou se evaporando, e sobrou aquela camada de sal, que mede entre 2,80 m a 3,0 metros, e que pode ser cortada por serras como se fossem grandes pranchões de madeira. Em alguns pontos explora-se a retirada do sal, mas aquilo é como retirar agulhas de palheiros, dano praticamente insignificante àquele oceano de sal petrificado, maravilha das maravilhas, coisa na qual eu acreditava por estar vendo – até já vi coisa parecida na televisão, mas nunca pensara estar a pisar, de verdade, num espetáculo daqueles.
Tivemos, porém, que acabar partindo. Adiante do salar, tanto quanto me lembro, a nossa subida acabara – muito haveria a subir, ainda , em outros dias. Viajávamos, agora, por uma paisagem árida e seca, com pouquíssimos pontos de umidade e minúsculas lagoas, e montanhas altíssimas espalhadas em alguns pontos do horizonte, raiadas de neves brancas, e que provavelmente eram vulcões. Nos pequenos pontos de umidade criava-se alguma coisa verde, musgos ou outras plantas adaptadas àquela secura e àquela altitude, e alguma coisa de fauna sempre deixava as suas marcas, às vezes até gordas lhamas peludas. O interessante eram as montanhas longínquas, prováveis vulcões: já passara o tempo do degelo, que decerto tinha sido muito forte um mês antes, e o que se via eram estrias de gelo, neves eternas em forma de fios que engalanavam tais montanhas como aqueles fios prateados que a gente usa para enfeitar árvores-de-Natal. Dava até para duvidar que aqueles fios brancos fossem mesmo feitos de neve e gelo – havia quem achasse que se tratava de calcáreo. Eu me lembrava de experiências anteriores nos Andes, e não tinha dúvida de que aquilo era gelo, e que aquelas montanhas, lá onde apareciam as estrias de gelo, deviam estar em torno de 5.000 m de altitude. Por onde andávamos, na planície desolada e quase toda seca, deveríamos estar a mais de 3.000 metros de altitude.
A tarde avançava e logo seria noite. Onde dormiríamos? De repente, antes que eu me desse conta, enveredamos para dentro de uma pequenina cidade, bem na hora em as crianças daquele lugar saíam da escola e caminhavam pelas calçadas de adobe da sua cidadezinha de adobe. As crianças pararam, estáticas, respiração suspensa diante daquela invasão de seres extraterrestres no seu pequenino burgo, e até hoje os olhos delas estão bem vivos na minha lembrança, e fico a imaginar que imagem guardaram de nós naquele por-do-sol de fim de setembro, quando a noite chegava rapidamente e eles olhavam para coisas que, talvez nem na sua pequena escola nunca tivesse sido mostrada. Extraterrestres vestidos de preto, em possantes máquinas negras com luzes brancas acesas, seriam pessoas como as outras ou seriam invasores que chegavam àquele lugar esquecido, que sequer nas enciclopédias tenho localizado? Ali era Susques, território argentino, e aquelas crianças de olhos encantados e arregalados eram quase os últimos pequenos argentinos com os quais nos encontraríamos – estávamos nas fímbrias daquele país.

[1] Procure saber um pouquinho mais sobre Geografia: a Cordilheira dos Andes ainda não está pronta – lá por baixo dela, as placas tectônicas continuam se movimentando e empurrando-a para cima. Recentemente, em 26 de dezembro de 2004, nós que estamos vivos hoje tivemos a oportunidade de ver o que acontece quando as placas tectônicas acabam se movimentando. Falo do terremoto, maremoto e consequentes tsunamis (ondas gigantes)que assolaram o sul da Ásia, tirando ilhas do lugar e mudando alguma coisa no eixo de rotação da terra. Muitas e muitas gerações tinham vivido sem terem a oportunidade de ver tal acontecimento da natureza, e por pior que tenha sido a catástrofe ocorrida, há que pensarmos que fomos privilegiados por podermos observar quase que milagrosamente, através da televisão, a movimentação das placas tectônicas. (Nota da autora) Posteriormente a esta nota, também li uma outra explicação a respeito da formação de um salar daquele tamanho à tal altitude – em resumo, talvez pudesse ser o secamento de um grande lago, como o Titicaca hoje.

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Mais gostoso do que estar lá, Urda, é ler sua explanação poética e apaixonada pelo lugar e pelas pessoas.

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