domingo, 18 de setembro de 2011







A arte de fingir

* Por Pedro J. Bondaczuk

O fingimento é, via de regra, apontado como um grande defeito, um desvio de personalidade, uma característica que torna as pessoas não confiáveis. Mas há uma grande injustiça nisso. Todos somos, em maior ou menor medida, uns fingidores. Uns mais, outros menos, mas ninguém escapa dessa atitude quase que instintiva. Nem é preciso citar o caso dos atores, que emprestam seus corpos e mentes para viver, por alguns instantes, a vida de pessoas que sequer existem. Que foram inventadas por um escritor. São uns fingidores por vocação e opção.
Na vida social, esse procedimento é extremamente comum. Poucos (se é que exista alguém) são absolutamente autênticos, pelo menos o tempo todo. O escritor William Somerset Maugham garante que a vida é um imenso teatro, onde todos representamos papéis. Uns trágicos, outros cômicos; uns grandiosos, outros ínfimos; uns bem-sucedidos, outros fracassados. Todos temos os nossos.
Fernando Pessoa garante que o poeta é um fingidor por excelência: "finge a dor que de fato sente". Estas considerações vêm a propósito da pergunta de um leitor sobre se o texto de alguém que vive de escrever reflete os seus sentimentos mais íntimos. Se quando está triste, o que escreve se impregna dessa tristeza, o mesmo acontecendo com a alegria, a raiva, a dor etc. No meu caso, posso dizer que, geralmente, não. Só quando quero que se reflita.
Aparecessem em minhas crônicas as angústias, os temores, as frustrações e as iras que sinto, há tempos eu estaria proibido de redigir. Seria a morte. Faltaria o ar que respiro. Faço desse nobre exercício de razão uma espécie de catarse. O texto serve-me como uma espécie de válvula de escape. Tanto que os mais otimistas foram redigidos em momentos de extremo baixo astral, quando as preocupações do dia a dia (contas a pagar, compromissos com os filhos, desentendimentos familiares etc.) provocam verdadeiro sufoco. Produzem um enorme desespero.
E qual a razão dessa confissão tão íntima? Estará alguém interessado no que penso, quero ou sou? Não existiriam coisas mais importantes, informações mais úteis, conselhos mais sólidos e orientações mais competentes para preencher estas linhas? É possível e provável que sim.
Alguns inimigos já me acusaram de apenas escrever besteiras. Sei lá se estão capacitados a fazer juízos. Tudo leva a crer que não. Mas a experiência mostrou-me que o poeta alemão Johann Wolfgang Göethe estava coberto de razão quando disse que nada interessa mais o homem do que o próprio homem.
Tranqüiliza-nos, por exemplo, saber que nossas angústias, medos e incertezas são os mesmos da maioria das pessoas. Não nos sentimos tão diferentes dos demais. Por outro lado, é um exercício permanente de humildade a constatação de que nossas virtudes não são únicas, mas são até bastante comuns.
O que são as etiquetas sociais e as convenções senão formas de fingimento? Lógico que ele não pode ser levado a extremos. Nada pode. Tudo o que é em excesso deixa de ser virtuoso. Até o amor excessivo torna-se um mal, por ser sufocante. Há uma recomendação que costumeiramente os amigos nos fazem de que não devemos levar os problemas de serviço para casa e vice-versa. Com coisa que isso fosse possível!
Ninguém tem um interruptor na cabeça que lhe permita se desligar de suas preocupações domésticas quando vai para o trabalho ou das profissionais, ao retornar ao lar. Que bom seria se isso fosse possível!
No meu caso, só consigo essa rara abstração nos momentos em que estou escrevendo, prosa ou verso, conto ou crônica, comentário ou ensaio, não importa. E aí funciona o filtro mental, que impede que o texto fique contaminado pelas preocupações e que estas acabem perpetuadas em letra de forma. Pelo contrário, as apaga. Este é um fingimento salutar.
Outro, é o expressado por Cecília Meireles no poema "Motivo": "Eu canto porque o instante existe/e minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta (...)//Sei que canto. E a canção é tudo./Tem sangue eterno a asa ritmada./E um dia sei que estarei mudo:/ mais nada". Eu também, Cecília. Eu também. Daí ser este fingidor, fingindo as dores que realmente sinto...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Há um grande interesse em saber o que o outro sente, pensa e deseja, senão jamais leríamos nada, e com tanto interesse. Adorei essas linhas bem traçadas. E de pensar que não as tinha lido devido a afazeres de domingo. Ainda bem que vim aqui saber o que pensa e sente o editor. E ainda ri ao ler a frase que destaco: " Sei lá se estão capacitados a fazer juízos. " Os que mais nos julgam são os que menos deveriam nos julgar. E o poema de Cecília Meireles é muito bonito.

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