quarta-feira, 31 de agosto de 2011







O Cabeleira é solto


* Por Marco Albertim

O sorriso fugiu-lhe dos beiços feito o corrupião, súbito preso, desjeitoso e mudo. O Cabeleira, na primeira bordoada da cepa de goiabeira, vira sumir da memória o tumulto promissor das reuniões no sindicato. O bioco cobrindo o rosto dos capatazes, no fim de tarde chuvoso no canavial, não lhe infundira medo; mesmo sabendo que o capote de feltro grosso no corpo do homem, dava abrigo a um rifle de cano longo e grosso; às vezes com dois canos. Na cela escura, estirado no catre de madeira, vira com os olhos inchados a feição dura do capataz que o ameaçara de morte várias vezes. O homem não estava ali, mas o efeito da tortura junto à solidão sem luz da cela, trouxera-o para um canto da parede; trouxera-o com a ajuda do juízo cambado.
Os soldados, do mesmo modo que não tiveram o cuidado de abafar-lhe os gritos, bem como o de ocultarem o uso do tronco cheio de nós da goiabeira, soltaram-no com o rosto ainda roxo de hematomas; o costado arriado. Justo num sábado, dia da feira, a rua apinhada de gente como ele. O Cabeleira, sem orgulho nem vindita na testa franzida pelo sol que lhe fora tirado há três meses, errou entre caçoás de inhames, macaxeiras, batatas. Quis embriagar-se com o cheiro do ananás exposto em grossas lonas no chão; mas as narinas, tumefatas, não deixaram o olfato vazar. Andou devagar, como urdira o soldado Garrafinha, como um exemplo vivo, quase morto, de rebeldia frustrada.
Deixaram-no tomar banho na cela dos fundos, sem grades, ao lado do tonel de água fria. Ele se arrepiou com os beiços tremendo. Um soldado apenas vigiando sua mirrada nudez. Depois deram-lhe um pente sem o exigir de volta. Com os cabelos penteados para trás, fácil seria identificá-lo como o líder que discursara sobre o parapeito da ponte. O vento soprando os finos cabelos, as folhas das canas. Agora, sentindo o mesmo sopro, a cabeleira não se deu por agitada, nervosa. Como a alma, os cabelos entranharam-se-lhe na submissão a um punhado de homens usando farda cáqui.
A família, uma mulher e três filhos, mudara-se para a rua do Toco. Uma dúzia de casas erguidas com o mesmo massapê que nutria as plantações. Casas apenas de um lado; de outro, uma fileira de aveloses; plantas verdes, com galhos da raiz ao alto, dois metros de altura e a ameaça de cegueira, caso o salpico do leite após o corte de um ramo atingisse os olhos.
Do outro lado dos aveloses, um sítio com fartura de cajás, mangabas, mangueiras, um leirão ou outro de coentros e covas de inhames com ramos verdes, soltos feito cobras. Sem vigias, mas cães ferozes dando segurança à família do abastado proprietário.
Mirta, tão magra quanto o marido, acolheu-o com o nome da certidão de batismo, de casamento.
- Adauto... – Queria abraçá-lo, mas a união dos dois não se curtira com afagos à luz do dia.
A casa não tinha luz, a não ser o lume mortiço do candeeiro na sala, da lamparina na cozinha.
Os filhos, o mais velho com 14 anos, o do meio com 12 e o caçula com nove. Todos usando camisa de chita e calça curta.
- Pai... – disse o mais velho.
Nenhum se moveu para tocar na pele sofrida do pai. Ele, também escasso em carinhos, tocou na cabeça de cada um. O cumprimento deu conta da sobrevida que conseguira manter.
Ela fora ao sindicato pedir ajuda em dinheiro. Informaram-lhe que os sócios, mesmo os que não foram presos, não estavam recolhendo para o caixa do sindicato. A usina não lhes pagara o salário, mas conforme o corte de tarefas. Da minguada renda, boa parte ficava com o Barracão, onde compravam charque, farinha, açúcar, café.
Os meninos, com as pernas iguais a cambitos de cana, tinham o rosto acinzentado; confundiam-se com o massapê socado do piso, das paredes sem reboco.
Mirta tratou as feridas do marido com tintura de barbatimão. Logo que viu-as secas, incitou-o a aceitar favores de algum senhor de engenho; assim, teriam comida e a untura de um banguezeiro ilustre. A polícia não o poria mais no açoite da goiabeira.
Múcio Rabelo, dono de engenho, gabava-se de tratar bem os empregados; sobretudo depois de bêbado. Reconheceu o Cabeleira na feira.
- Já está trabalhando? – quis saber.
- Não tem jeito. Ninguém me dá trabalho.
Não ouviu promessa de trabalho. Da última vez que agradeceu ao senhor de engenho o dinheiro para a feira, o vento soprou na calçada da próspera rua do Amparo. Os cabelos de Adauto, curtos, não seguiram no rumo do vento.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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