domingo, 24 de julho de 2011







O rio do tempo


* Por Pedro J. Bondaczuk


"O tempo esmorece os ardores no coração humano". A afirmação é do padre Antônio Vieira e consta de um dos seus tantos e inspirados sermões. O passar dos anos nos produz, entre outros desgastes (além do físico), o do ideal. Por mais bem sucedida que seja uma pessoa, o acúmulo de frustrações, de mágoas e de decepções cobra fatalmente o seu preço. Para uns, este é menor e para outros, é absurdamente elevado. Mas todos pagamos algum. Quem não tem convicções firmes, acerca do seu papel no mundo, e é dotado de uma personalidade tíbia, deixa esfriar depressa o entusiasmo da juventude e muitas vezes termina a vida amargo e vazio.

Há jovens que nunca chegam a se entusiasmar. Já "nascem velhos". Ou são criados em circunstâncias tão terríveis, como bichos soltos nas ruas, que perdem (ou jamais adquirem) a noção das origens e nunca formam idéia de destino. Têm vidas curtas, terríveis e cinzentas. Afrontam mortes violentas e adredemente anunciadas. Pessoas sem objetivos ou referências criam, muitas vezes, todo um universo de fantasias ou recorrem às drogas e ao álcool para suportar o peso do fracasso que engendraram ou "herdaram".

O antídoto para esse esmorecimento dos ardores é a persistência, tenaz, constante e permanente. Contra o desânimo o remédio é persistir, persistir e persistir. Não há outro caminho para se chegar ao topo da montanha. A única estratégia cabível é a de valorizar o que a pessoa é e aquilo que já conquistou. Ou seja, é o autoconhecimento. É a informação, sobre todos e sobre tudo. É o estímulo à criatividade. Mas é preciso ter ambição e querer sempre mais, sem medir esforços para a obtenção do que se deseja, desde que seja lícito e não fira direitos alheios. É preciso querer o máximo para se obter o mínimo. Os objetivos, todavia, têm que ser factíveis, mesmo que minimamente. É inútil correr atrás de sombras, de fantasmas, de miragens que se desfazem tão logo se chega perto.

O tempo é inexorável e não há como deter o desgaste que ele produz. O padre Eugene Charbonneau, em um artigo que publicou no jornal "Folha de S. Paulo", em 31 de dezembro de 1986, expôs, em forma de poema, esta interessante alegoria a esse propósito: "Passado...Presente...Futuro.../Todos os três/formam apenas um rio./Quem é que te engana?/O grande enganador: o tempo./No tempo não há lugar/para o homem./Nele ele está deslocado./Um passo...a corrente o apanha./A corrente do tempo./Que diferença/entre olhar o rio/ou estar dentro dele./O homem também é dono do rio".

Alguma coisa, em nosso íntimo, rebela-se (em vão) contra nossa efemeridade, resiste à idéia da morte, que nos aniquila e anula e, na maioria dos casos, apaga todo e qualquer vestígio da nossa existência. Um ser tão complexo e que tem condições para ser maravilhoso, se criar as circunstâncias adequadas, se quiser e se esforçar para isso, não pode ter sido feito para morrer. Sua morte envolve, senão uma contradição, um incrível desperdício de esforço, de vontade, de energia, de inteligência e sabe-se lá mais do que. De fato, "no tempo não há lugar para o homem..."

Talvez esteja aí a razão do esmorecimento do ardor. Talvez centralize-se na certeza da mortalidade. Na verdade, essa inexorabilidade deveria ter um efeito inverso. Deveria despertar em nós a vontade de viver plenamente cada ínfimo segundo, pela possibilidade dele ser o último da nossa existência. O homem pode criar arte com seu próprio corpo, com sua vida, com sua experiência pessoal, embora esta pareça fútil, trivial e sem importância.

Quem sugere esse caminho é Jorge Luís Borges. "Devemos fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade". Nossas experiências pessoais, por mais corriqueiras que pareçam, podem ter grande importância para nossos companheiros "de aventura", para as pessoas do nosso tempo e, principalmente, para as gerações futuras. As mesmas fraquezas que detectamos em nós e que buscamos esconder dos outros, para não deslustrar a nossa "imagem", são as dos que nos rodeiam, que igualmente as escondem.

Nossas dúvidas, princípios e esperanças são compartilhados por milhões, quiçá bilhões, ao redor do mundo. Todos somos vítimas da efemeridade. Todos trazemos em nós, em nossos corpos, em nossas vidas, mesmo que pareçam grandiosas aos olhos alheios, os mesmos defeitos, as mesmas misérias e as mesmas covardias que tanto nos envergonham. Afinal, "no tempo não há lugar para o homem..." Passado, presente e futuro são uma só coisa, um "único rio", cujas origens e destino estão no infinito. Ninguém sabe de onde suas "águas" vêm e nem para onde vão. Todos, indistintamente, somos como a personagem do escritor judeu Isaac Bashevis Singer, que monologava: "O tema era sempre o mesmo: que é a vida e que é a morte? Que é o tempo que não acaba mais?". Sim, o que é???


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Também escrevi sobre o tempo hoje, porém com os pés no trivial. Não cheguei a esse nível filosófico. Enfim, o tempo nos amedronta: quando corre, quando falta e quando sobra.

    ResponderExcluir