domingo, 26 de junho de 2011



Luxúria


* Por Rubem Alves

Luxúria! Que imagens vêm à sua cabeça quando você ouve essa palavra? Não é preciso dizer. Eu sei. São imagens de grandes orgias sexuais, bacanais.
Um filme pornô sempre ajuda a imaginação. Ficam escondidos, no cantinho da locadora de vídeos, ou numa sala especial. Por que será que os filmes pornôs ficam escondidos e os filmes de matança e horror não ficam? Acho que é por vergonha.
Houve um tempo em que a censura funcionava para proteção da pureza da família brasileira. O censor era o encarregado de aprovar ou reprovar as cenas. E o critério básico era claro: cortar a cena em que o mocinho beija o seio da mocinha e deixar a cena quando o bandido corta o seio da mocinha...
Olhando para os lados, vencendo medo e vergonha, você pega o vídeo pornô... “Deus me livre. Jamais faria isso. Não é comigo. Desse pecado eu não sofro. Sou pessoa religiosa, carismática, evangélica. Ver filme pornô é coisa de gente depravada. Gula, inveja, arrogância, até que pode ser. Mas luxúria, jamais! Pra dizer a verdade até que perdi o interesse por coisas do sexo. A idade sempre ajuda as virtudes...” Pois eu quero lhe dizer que luxúria não é nada disso. A luxúria não mora nos genitais. Ela mora nos olhos. Isso mesmo. Luxúria é um jeito de olhar.
Eu tinha um livro de arte erótica. Para escrever essa crônica fui atrás dele. Queria examinar de novo alguns detalhes divertidos. Mas onde está o danado? Sumiu. Ainda vou escrever sobre essa curiosa propriedade que os livros têm de sumir. Mas, voltando ao tal livro de arte erótica que comprei num sebo: o que eu procurava era uma ilustração: homens e mulheres, numa alegre reunião social, vestidos a rigor, tomando drinques. Só que nenhum deles possuía um rosto. Os rostos eram pênis e vaginas sorridentes em alegre conversação. Pois essa é, precisamente, a característica da luxúria: os olhos não se interessam por rostos, olhos, cabelos, mãos. Eles só vêm uma coisa: os genitais.
Ah! Você vai logo dizer que isso não acontece com você. Bem, tudo é crível... Mas deixa que lhe pergunte a você, mulher pura: “Quando você está na praia e vêm aqueles gatos musculosos andando, verdadeiros deuses apolíneos – claro, você olha para o rosto. Mas, e depois de olhar para o rosto? Por onde passeiam os seus olhos?”
Os homens são mais desavergonhados. Vão logo tirando o biquíni da gatinha – afinal de contas, os biquínis cobrem tão pouco! Os olhos mergulham nos detalhes que não são vistos mas são sugeridos. Biquínis e sungas são convites à visão do que não se vê. Na praia essa transformação do olhar é evidente. Mas a mesma coisa acontece na vida normal. Um amigo, professor, me confessou do seu embaraço ao perceber os olhares de suas jovens alunas, centrados em lugares outros que não o seu rosto. Talvez porque ele não fosse superdotado e se sentisse diminuído.
O pecado da luxúria faz isso: as pessoas atacadas por ele perdem a capacidade de ver rostos. Só vêm os genitais e as coisas que se podem fazer com eles. Com isso elas se tornam incapazes de amar. Porque o amor nunca começa nos genitais. O amor começa no olhar. Olhando fundo dentro dos olhos de alguém possuído pelo demônio da luxúria a gente só enxerga uma coisa: pênis e vaginas. Pênis e vaginas, de vez em quando, tudo bem. São partes, pequenas partes, de um delicioso brinquedo que se chama “fazer amor”. Mas quando é só isso que aqueles olhos vêem, o resultado é uma imensa monotonia. Porque todas as orgias sexuais, no fundo, são a mesma coisa.
Cura para a perturbação oftálmica chamada “luxúria”? Nem reza, nem promessa, nem flagelação, nem ameaça. O remédio é poesia. Os demônios têm horror de poesia. Não há luxúria que resista aos poemas do Vinícius, do Drummond, da Adélia. O Drummond tinha vergonha do seu erotismo. Escreveu poemas de uma sem-vergonhice deliciosa mas não os publicou em vida. Tinha vergonha de revelar esse seu lado secreto. Mas ele morreu e os poemas estão aí. A Adélia não tem vergonha. Haverá coisa mais erótica que o seu poema sobre a escamação de peixes? “Há mulheres que dizem: meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como ‘este foi difícil’, ‘prateou no ar dando rabanadas’ e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.”
Nos meus tempos antigos de protestante usava-se fazer uma coisa chamada “culto doméstico”. A família se reunia para ler a Bíblia e orar. Acho que costume semelhante seria salutar: as famílias se reunindo depois do jantar para ler poesia. Inclusive as Sagradas Escrituras. Não há luxúria que resista à leitura do livro do “Cântico dos Cânticos”.
Oh, meu amado, beija-me com os beijos da tua boca: porque melhor é o teu amor do que o vinho. Como és formosa, querida minha, como és formosa! Teus olhos são como pombas e brilham através do teu véu.
Os teus lábios são como um fio escarlate e as tuas faces como uma romã partida.... Arrebataste-me o coração com um só dos teus olhares! Os teus lábios destilam mel. Mel e leite se acham debaixo da tua língua. Os meneios dos teus quadris São como colares trabalhados pelas mãos de um artista. O teu umbigo é uma taça redonda a que não falta bebida.
E o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios. Os teus seios são como os cachos da videira E o aroma da tua respiração como o das maçãs...Vem, ó meu amado... Já despi a minha túnica...”

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

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