quinta-feira, 19 de maio de 2011







Só muda o endereço

* Por Fernando Yanmar Narciso

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar sempre se interessou por personagens desajustados. Homossexual assumido, ele busca sempre a cada filme quebrar paradigmas e mostrar a sexualidade em todas as nuances possíveis, sempre com um respeito incomum ao cinema tradicional pelo público GLS. Outros dos seus filmes foram Ata-me, Mulheres a beira de um ataque de nervos, Volver e muitos outros.
Tudo sobre minha mãe, de 1999, traz um estudo incomum do universo feminino, da maternidade e da própria vida. Acompanhamos aqui a saga de Manuela, mãe solteira e devotada, e seu jovem filho, Estéban. Os dois formam uma verdadeira equipe, fazendo quase tudo juntos. Ele tem mania de anotar tudo o que passa por sua mente em um caderninho e sonha tornar- se escritor, ela é uma enfermeira num hospital de órgãos. No dia em que Estéban completa 17 anos, ele lhe pergunta, talvez não pela primeira vez, a respeito do pai dele, a quem nunca chegou a conhecer, o que ela promete revelar mais tarde. Para celebrar o aniversário do filho, os dois vão assistir à encenação de sua peça favorita Um bonde chamado desejo, mais conhecido pelo público brasileiro como o filme de Marlom Brando, Uma rua chamada pecado. Na saída do teatro, Estéban tenta conseguir um autógrafo de Huma Rojo, atriz principal. Porém, como desde o início, quando é mostrada a profissão de Manuela, já podemos prever que vai acontecer alguma tragédia, e a tensão vai aumentando durante sua corrida para conseguir o autógrafo, que chega ao cume quando o rapaz é atropelado e morre. Após doar os órgãos do filho, Manuela decide voltar à sua cidade natal, Barcelona, de onde partiu grávida, se reencontrar com o pai do garoto, agora vivendo como transexual, para lhe dar as más notícias. Assim embarcamos na nada pacata história de seu passado.
Descobrimos que ela foi prostituta antes de ser enfermeira em Madri. Logoem seus primeiros minutos na cidade, ela vai à uma zona de meretrício, onde conhecemos sua antiga melhor amiga, Agrado, um travesti muito bem cotado na cidade. Quando não está atendendo seus clientes, ela trabalha no backstage da peça- quem diria?- Um bonde chamado desejo, sendo inclusive amiga íntima de Huma Rojo, atriz que, por um acaso, é lésbica, e tem um caso com a colega de peça Nina, bem mais jovem que ela e viciadaem heroína. Quando vai procurar emprego, Manuela fica conhecendo Rosa, uma jovem freira que trabalha com a assistência social, que está grávida de alguns meses.
Logo ela revela que está com AIDS, por ter engravidado justamente do mesmo homem que engravidou Manuela. Comovida pela história, ela passa a agir como irmã de Rosa. Assim, apesar de nos parecer algo bizarro, ela tenta se adaptar ao seu antigo mundo novo, ganhando uma nova família enquanto continua a procurar pelo pai de seu filho.
A maioria de nós talvez pense “Eu sou o normal. Todos os outros ao meu redor são loucos”. O que pode parecer grotesco ou até mesmo imoral para alguns, talvez pareça a coisa mais trivial do mundo para os alvos de nossos preconceitos. Nossos pais e avós nos instruíram a considerar prostitutas, transformistas, transexuais ou soropositivos pessoas a serem evitadas, vítimas da sociedade que estão em tal situação porque foram forçadas, ou por algum tropeço do destino. Sequer passaria por nossas cabeças que alguns deles são o que são simplesmente porque gostam de ser, e são capazes de passar por tais períodos da vida sem arrependimentos.
Apesar dos temas em essência pesados, dignos talvez de um conto de Nelson Rodrigues, Almodóvar conduz sua fábula de desajustados de uma maneira bem leve, sem apelar para violência gratuita ou estereótipos exagerados, típicos de Hollywood. Todos os personagens, apesar de nos parecerem saídos de um circo, vivem suas vidas com uma naturalidade surpreendente, parecendo nem pensar que são o que são. Numa memorável cena, as quatro personagens principais têm uma acalorada discussão sobre sexo oral, mas o fazem como se todas fossem mulheres.
Na tradição do cinema europeu, tudo é filmado em clima intimista e de desenrolar lento e, de certo modo, aconchegante, sem cortes bruscos e a correria típica de produções americanas. O diretor foi genial ao nos fazer rir e chorar ao mesmo tempo, e acabamos nos identificando tanto com estes personagens tão estranhos que nos sentimos como se estivéssemos ali, aos ombros de Manuela e sua turma, participando da história. Numa película povoada, pelo menos em tese, basicamente por mulheres, Almodóvar, com sensibilidade e grande maestria, ataca o conservadorismo e os estereótipos de forma contundente e inesperada, fazendo o incomum parecer natural, o feio parecer belo, tentando nos liberar de nossa visão retrógrada do mundo.

• Designer e colunista do Literário, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com

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