terça-feira, 26 de abril de 2011




O condor voou para o infinito

O que vejo nesta mesa: tigres, Borges, tesouras, mariposas/que não voaram nunca, ossos/que não moveram esta mão, veias/vazias, tábua insondável?//cegueira vejo, espetáculo/de loucura vejo, coisas que falam sós/por falar, por precipitar-se/até a exigüidade desta espécie/de beijo que se aproxima, teu rosto vejo”. Estes versos magníficos, do poema “Aleph” (em claríssima alusão a Jorge Luís Borges que escreveu um livro com este título), são daquele que é considerado hoje o maior poeta chileno do século XX.
Não, leitor amigo, não me refiro a Pablo Neruda, embora reconhecendo sua grandeza, talvez igualável, mas provavelmente insuperável. Nem a Gabriela Mistral, sublime, mística, grandiosa em sua simplicidade. Ambos, é mister que se frise, ganharam o Prêmio Nobel de Literatura.
Refiro-me a Gonzalo Rojas, que talvez não seja tão conhecido no Brasil quanto os consagrados poetas citados. Mas que é tido e havido pelos críticos, quer do seu país, quer do exterior, como o maior poeta chileno do século XX (não se pode falar também do XXI, que ainda está no início e que tende, portanto, mesmo que potencialmente, a revelar outros gigantes literários).
É muito complicado hierarquizar escritores de estilos e temáticas diferentes. Não gosto, por exemplo, de dizer, que fulano é maior, sicrano é menor e assim por diante. Trata-se de avaliação sumamente subjetiva e não raro emocional. Depende de como você se sente quando lê a obra de um e outro. E o que lê desses escritores. Às vezes cai-lhe em mãos não sua obra-prima, mas uma menor, que não condiz com sua grandeza e fama.
Li a obra dos três poetas e, honestamente, coloco-os no mesmíssimo patamar de qualidade, inspiração, talento e genialidade. Cada um no seu estilo, claro. Os três têm muito mais diferenças do que semelhanças. Rojas escreveu mais do que Neruda e Mistral (pois viveu mais também). Ou seja, legou à posteridade nada menos do que 51 livros! E todos com o mesmo padrão de qualidade.
E por que me refiro a ele no passado? Simples, porque Gonzalo Rojas, que classifico como condor, pela majestade da sua poesia, voou, em 25 de abril de 2011 (ontem, portanto), para o infinito. Deixando de eufemismo, informo-lhes que morreu, aos 93 anos de idade (faria 94 em 20 de dezembro próximo), após longa internação hospitalar, em decorrência de um acidente vascular cerebral sofrido no início do ano.
Ressalte-se que a literatura chilena é riquíssima. Tenho estreito contato com ela até por um fator sentimental, familiar, já que um dos meus genros é nascido no Chile. Estou terminando de ler, por exemplo, o livro (póstumo) de Roberto Bolaño, intitulado “2666”, de quase mil páginas, sobre o qual discorrerei oportunamente.
Escrevo, pois, com relativo conhecimento de causa (creio que o absoluto ninguém tem, pois para tanto, seria necessária dedicação integral apenas às letras de determinado país, no caso, do Chile). Além dos três poetas que citei, Pablo Neruda e Gabriela Mistral, ganhadores do Prêmio Nobel de Literatura, e de Gonzalo Rojas, ganhador de três prêmios também de imenso prestígio – Prêmio Nacional de Literatura do Chile, Prêmio Rainha Sofia de Literatura Íberoamericana e Prêmio Cervantes – poderia mencionar uma dezena de outros, de menor repercussão, mas nem por isso menos importantes.
De um bom tempo para cá, desde que retornou do exílio – deixou a pátria quando Augusto Pinochet deu o golpe que resultou na deposição e morte de Salvador Allende, a cujo governo serviu – tornou-se praticamente unanimidade no Chile. Sua poesia, de cunho surrealista, ultrapassou fronteiras e ganhou foros de universalidade, já que foi traduzida para diversos idiomas, como inglês, alemão, francês, português, russo, italiano, romeno, sueco, chinês, turco e grego.
Rojas foi professor, em várias universidades do Chile e do Exterior. Teve intensa atuação diplomática antes e durante a gestão de Salvador Allende, como conselheiro cultural da embaixada do Chile em Pequim (1970-1971) e como encarregado de negócios em Cuba (1972-1973). Como se vê, teve trajetória até certo ponto comparável à de Pablo Neruda, pelo menos no aspecto diplomático.
O golpe de 1973 afetou-o profundamente. Em primeiro lugar, com a morte do presidente deposto, de quem era, além de admirador e colaborador, amigo pessoal. Em segundo, pela necessidade de partir para o exílio, para evitar a prisão ou coisa pior. E, por fim, por ter sido exonerado do cargo de professor nas várias universidades em que lecionava.
Esteve exilado, entre 1973 e 1975, na República Democrática Alemã, ou seja, a extinta Alemanha Oriental. Dali, partiu para a Venezuela, onde permaneceu até 1980. Os anos finais do exílio passou nos Estados Unidos (de 1980 a 1994), lecionando em várias universidades locais (como a Colúmbia, a Universidade de Chicago e a Brigham Young) de onde regressou ao Chile, após o fim do regime de Pinochet.
Não há forma melhor e mais justa de homenagear um poeta, quer por sua morte ou quer se continue vivo, do que reproduzir seus poemas. É, pois, o que faço, em relação a Gonzalo Rojas, ao partilhar com vocês estes versos de “A quem importar possa”: “Das 300.000 palavras que terei pronunciado até o presente, a partir/de quarta-feira 14 de maio de mil/novecentos e trinta e oito, há 3/que se perderam; as outras/estarão por aí voando/de ouvido em ouvido voando como vespas no ritual/inalcançável do acasalamento, cruza/do sânscrito ao alemão, “cultrun” com/mutuca grega, “Sein/und Zeit” da Grande Serpente contra/a qual ninguém pode, galáxia/cega da confusão de que/está feito o mundo;/as encomendo/se acaso as vêem; uma é/Inche em mapucho e parece muito com pensamento/de molusco, a outra/em grego Hen, o Uno/na lufada de/Heráclito; a terceira sem cara:/Deus”.

Boa leitura.

O Editor.



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Um comentário:

  1. Ler o Editorial tornou-se imperativo. Viajei e não pude fazê-lo. Perdi com isso. Retorno em busca do saber.

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