sexta-feira, 18 de março de 2011


Os “dois Paraísos”

O poeta português Teixeira de Pascoaes escreveu, no poema “Paraísos”: “Temos dois paraísos: o da infância/e o da velhice;/o da flor e o do fruto;/o da loucura e o da razão./O Jardim e o Pomar,/a Primavera, deusa helênica,/o Outono, deus da Ibéria./O resto é inverno até à Groenlândia/e verão até o Cabo”. “Como?”, perguntará o sujeito cético e contestador, “classificar infância e velhice como Paraísos?!!! Afinal, a criança e o idoso são dois dos elos frágeis da corrente da vida!”. O contestador, óbvio, estará coberto de razão. Isso, se atentarmos apenas para o aspecto prático.

Todavia, não estou defendendo nenhuma tese que me exija rigor científico. Ademais, essas duas fases extremas da vida podem ser, realmente, paradisíacas, dependendo das circunstâncias de cada pessoa. É verdade que, nestes casos, elas seriam exceções. Esses dois pólos opostos, via de regra, implicam em dependência, que varia de pessoas para pessoa. Seus integrantes são os mais propensos a abandono. Daí algumas sociedades mais evoluídas criarem estatutos para a proteção tanto de crianças quanto de idosos.

Minha pretensão, porém, não é a de abordar o aspecto realístico da questão. Até porque, a realidade, fria, hedionda e lamentável, só não conhece quem não quer. Basta estar atento, ser bem informado e manter os olhos bem abertos para o que ocorre ao redor. Muitos, porém, não se dão conta de que essas fases, com seus riscos e vulnerabilidades, podem ser maravilhosas e inesquecíveis. São os períodos da vida mais enfocados na literatura, que em última análise é o tema de que me interessa tratar neste espaço, notadamente na poesia. O poema de Pascoaes, portanto, não é o único a ter essa abordagem otimista.

Dos que se referem à infância, há tantos, que julgo desnecessário e até redundante citá-los. Seria pensar mal do leitor, que certamente conhece vários deles. Já os que abordam a velhice, não são em tanta quantidade, mas ainda assim, inspirados e belos.

Um deles, por exemplo, é este poema “Bem aventurança do idoso”, de Ester May Walker: “Bem aventurados são aqueles que mostram/ compreensão quando meus passos são incertos e minha mão treme./Bem aventurados os que compreendem/ que meus ouvidos nem tudo podem ouvir./Bem aventurados aqueles que aceitam/ que não enxergo bem e não posso acompanhá-los./Bem aventurados aqueles que fingem/ não notar que entorno e sujo coisas na mesa./Bem aventurados aqueles que param um momento/ para bater um papinho comigo./Bem aventurados aqueles que dizem:/ você já contou isso.../Bem aventurados aqueles que me deixam/ contar coisas do passado./Bem aventurados aqueles que me fazem/ sentir que me amam, que não estou sozinho./Bem aventurados aqueles que me respeitam/ quando tenho dificuldades em carregar a minha cruz./Bem aventurados os que me ajudam por sua bondade/ a encontrar o caminho para o Pai bondoso”.

Entendo que envelhecer bem, com saúde física e principalmente mental, é, além de grande ventura, uma arte, que nos convém cultivar desde cedo. Manda a prudência que construamos vasta rede de afetos ao nosso redor que nos serão úteis quando as forças minguarem e precisarmos de todo o carinho e compreensão possíveis. Mas que estes nos sejam ofertados não por eventual obrigação, mas por genuíno afeto, por profundo amor. E este é cultivável, sem dúvida. Devemos planejar a velhice de sorte a sermos os mais auto-suficientes possíveis. Não por questão somente de orgulho, mas por razões puramente práticas. Isso é possível? Não sei. Presumo que sim, baseado em exemplos que conheço.

Há pessoas em idades bem avançadas que se bastam em todos os sentidos. Quando amparadas, o são por afeto e desvelo de parentes e amigos e nunca por premente necessidade ou por cumprimento de obrigações. Claro que trato, apenas, de casos digamos “normais”, que não envolvam doenças ou lares desagregados e destruídos pelas mais diversas razões. Voltando à poesia, que é, de fato, o assunto destas reflexões que, reitero, não se propõem a ser nenhuma tese sociológica ou antropológica, encontrei este pequeno grande poema de Mário Quintana, que traz sua peculiar visão da arte de envelhecer, que diz: “Antes, todos os caminhos iam./Agora, todos os caminhos vêm./A casa é acolhedora,/os livros poucos./E eu mesmo preparo/o chá para os fantasmas”.

No livro “Elogio à loucura”, Erasmo de Rotterdã traça, naquele estilo irônico que o caracterizou e o tornou célebre (e perseguido por poderosos desafetos) um paralelo entre a infância e a velhice, entre a criança e o idoso, da seguinte maneira: “Os velhos apreciam bastante a companhia das crianças, e estas a dos velhos, pois os deuses gostam de unir os semelhantes. Realmente, se fizermos abstração das rugas e do número de anos, próprios da velhice, haverá dois seres que se assemelhem mais que o velho e a criança?”.

A seguir, esse eminente encrenqueiro holandês apresenta algumas dessas semelhanças: “Ambos têm cabelos brancos, boca sem dentes, corpo flácido, ambos gostam de leite, ambos balbuciam, ambos falam sem cessar; a tolice, o esquecimento, a indiscrição, tudo concorre para estabelecer entre essas duas idades perfeita semelhança. Quanto mais envelhecem os homens, tanto mais se passam a crianças, até o dia em que abandonam o mundo, como verdadeiras crianças, sem aversão à vida e sem perceber a morte”.

Claro que aí há muito de exagero, mas também há muito de verdade. Prefiro, porém, encerrar estas reflexões com poesia, e de primeiríssima qualidade. No poema “Brinquedos de criança”, Mário Quintana encerra o assunto de forma magistral e com chave de ouro: “Recordo ainda... E nada mais me importa.../Aqueles dias de uma luz tão mansa/ que me deixavam, sempre, de lembrança,/algum brinquedo novo à minha porta...// Mas veio um vento de Desesperança/soprando cinzas pela noite morta!/E eu pendurei na galharia torta/todos os meus brinquedos de criança...//Estrada afora após segui...Mas, ai,/embora idade e senso eu aparente,/não vos iluda o velho que aqui vai://eu quero os meus brinquedos novamente!/Sou um pobre menino...acreditai.../que envelheceu, um dia, de repente!...”

Boa leitura.

O Editor.

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