sábado, 26 de março de 2011




O peru de Natal



* Por Alberto Moravia

No dia de Natal, quando o comerciante Policarpi-Curcio ouviu no telefone a mulher pedindo-lhe que chegasse em casa pontualmente porque tinha peru, alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, não lhe restara outra paixão a não ser a gula. Imensa porém foi sua surpresa quando, ao chegar em casa por volta de meio-dia, encontrou o peru não na cozinha, enfiado no espeto e girando lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de visita. O peru, vestido com elegância antiquada, com um paletó preto com debruns de seda, calças em tecido xadrez preto e branco e colete cinza com botões de osso, conversava com a filha de Curcio. A surpresa de Curcio ao encontrar o peru numa atitude e num lugar tão insólitos foi tão grande que, após as apresentações, aproveitando um momento de silêncio, ele não pôde deixar de inclinar-se para frente e dizer com cortesia mas também com firmeza: "Com licença, senhor... não sei se estou enganado... mas... mas me parece que o seu lugar não deveria ser aqui... repito, não sei se estou enganado... mas... o seu lugar deveria ser..." ia dizer "na panela", quando a mulher que, como ela mesma dizia, conhecia o seu rebanho, pisou-lhe no pé; e Curcio, que sabia por longa experiência o que significava aquele gesto, calou-se. A mulher, então, fez-lhe um sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz baixa e excitada que, pelo amor de Deus, não estragasse tudo. O peru era nobre, rico e influente; enfim, um excelente partido; e já demonstrava um interesse particular e evidentíssimo por Roseta; por acaso, com seus estúpidos comentários, ele queria acabar com o casamento que estava quase para se concretizar? Curcio desculpou-se com a mulher e jurou que não abriria mais a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião desavisado teve apenas o efeito de fazê-lo pegar o monóculo e examinar o infeliz de cima a baixo. Logo depois voltou a conversar com a filha de Curcio.

"Não adianta falar", pensava Curcio daí a pouco, sentado à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em cortesias com o peru, "com um tipo como este, mais que dar-lhe a filha em casamento, a gente gostaria de torcer-lhe o pescoço". Curcio estava irritado sobretudo com o ar de superioridade e displicência que o peru assumia toda vez que lhe dirigia a palavra. Curcio sabia muito bem que vinha, como se costuma dizer, do nada, e que suas maneiras não eram tão elegantes como a mulher e a filha desejariam que fossem. Mas ele trabalhara a vida toda e ganhara muito dinheiro, era essa a razão pela qual não tinha tido tempo de cuidar da sua educação. O peru, ao contrário, com toda aquela empáfia, não poderia dizer o mesmo. Belas maneiras, sem dúvida, ares de grão-senhor, mas no final das contas, Curcio poderia jurar, pouca substância. Outra coisa que irritava Curcio era a maneira com a qual o peru, após ter dito alguma coisa espirituosa ou profunda, atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhões na gravata preta de plastrão e estufando o peito debaixo do colete. E finalmente o peru falava com a mulher de Curcio com a mesma escolha cuidadosa de palavras e a mesma modulada preciosidade de acento com que se dirigiria a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se porque lhe parecia perceber certa dose de ironia neste respeito excessivo. "Para a panela", pensava, "para a panela...”

Contudo, essa antipatia de Curcio era mais do que compensada pela enfatuação das duas mulheres, mãe e filha, pelo peru. A mulher de Curcio e Roseta ficavam simplesmente suspensas aos lábios, ou melhor, aos barbilhões do peru, que as fascinava com seus relatos incríveis de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como aquele, que tinha intimidade com a alta sociedade, envaidecia a mãe. Quanto a Roseta, ela enrubescia, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares ora suplicantes, ora inflamados, ora lânguidos, ora assustados. Acontece que desde o início do almoço o pé do peru, calçado numa antiquada mas elegante bota de camurça cinza com botões de madrepérola, não parava um instante sequer de molestar a sapatilha da moça.

Depois que o peru foi embora, houve uma discussão violentíssima entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que, como todo mundo sabe, escondem sob a arrogância um monte de trapaças. Ele tinha trabalhado a vida toda e não se sentia inferior a nenhum peru deste mundo. A mulher respondia que este furor era inútil; o peru nunca afirmou que era superior a ele; que bicho o tinha mordido? Quanto a Roseta, tendo-se deitado como costumava fazer todo dia depois do almoço, já estava sonhando com o peru. Via-o inclinado sobre ela que estava deitada de costas, as asas em volta de seus ombros, o bico sobre seus lábios entreabertos. 0 peru olha para ela carrancudo, e começa a estufar-se, a estufar-se, enchendo o quarto com suas penas cinzentas; mas, embora seja imenso ele parece leve ao colo de Roseta que suspira no sono e murmura: "Querido peru".

Nos dias seguintes apesar da crescente e visível antipatia de Curcio, o peru acabou se instalando na casa. Almoçava com eles; em seguida, ia para a sala de visita com a filha e lá ficava até a hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, estavam praticamente noivos, embora o peru por motivos de família não quisesse que fosse feito, por enquanto, o anúncio oficial. "Belo genro", resmungava Curcio, “aceito um homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru..." Curcio, entrando em casa, podia ver, através dos vidros da porta da sala, a graciosa cabeça da filha ao lado da cabeça oca, feroz e estúpida do peru. Ele pensava que aquelas mãozinhas tão brancas e miúdas podiam estar acariciando aqueles barbilhões vermelhos e enrugados e sua antipatia aumentava.
Acontece que, mesmo continuando a cortejar Roseta, o peru não se decidia a pedi-la em casamento. Até a mãe começava a ficar preocupada. Se era um peru sério, disse ela um dia para a filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Roseta, ao ouvir essas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na realidade, o peru tinha conseguido desde os primeiros dias obter da moça os extremos favores. E agora ela, não menos que a mãe, estava ansiosa para que o peru regularizasse , por assim dizer, sua situação.

Um dia Roseta recebeu o peru na sala com um rio de lágrimas. Ela não podia viver daquela maneira, balbuciava entredentes, mentindo para si mesma e para os pais O peru percorria a sala com largas passadas, as penas desalinhadas fora do colete, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injetados de sangue. Finalmente disse-lhe que ela podia tirar da cabeça a idéia de casamento. Em vez de casar, se ela quisesse, podia fugir com ele para o exterior. Naquela noite ou nunca mais. Após muitas hesitações, Roseta acabou concordando.

Naquela noite, Curcio, que sofria de insônia, levantou-se para ir tomar um pouco de ar na janela. Era uma noite de verão com a lua no auge de seu esplendor. Os Curcio moravam num palacete. Olhando pela janela, sem fazer barulho nem acender as luzes para não acordar a mulher, a primeira coisa que viu foi a sombra gigantesca do peru, com a cabeça erguida e o pescoço estufado, o bico verruguento virado para cima, refletida nitidamente na parede da casa inundada pela branca luz do luar. Ele baixou os olhos .e ainda teve tempo de ver a filha pular de uma janela do primeiro andar entre os braços do peru. Este, carregando-a nos braços como se fosse uma trouxa, com uma força de que ninguém suspeitaria, rapidamente levava a moça em direção ao portão. Curcio acordou a mulher, correu a buscar uma velha espingarda. Mas quando desceu não encontrou nenhum sinal dos fugitivos.

No dia seguinte, Curcio deu parte à policia do rapto. Mas nas delegacias ninguém acreditou. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado sua filha. Os perus ficam nas gaiolas. Aliás a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.

Mas as trapaças do peru foram descobertas assim mesmo. Descobriu-se que era casado, com filhos. Descobriu-se ainda que não era nem nobre nem rico, mas apenas um simples garçom expulso de vários lugares por furto. Curcio exultava, embora cheio de bílis. A mulher só chorava e chamava a filha.

Tudo acabou com o costumeiro pedido de resgate; e Curcio teve que desembolsar muitos daqueles "belos tostões" ganhos com tanto sacrifício para ter de volta em casa a filha desonrada. Isso aconteceu em dezembro. No dia de Natal, a mulher telefonou para Curcio pedindo que não demorasse a voltar para casa já que havia peru; para eliminar qualquer equívoco, acrescentou que se tratava de uma pessoa muito séria que demonstrava uma visível inclinação por Roseta. Não era, enfim, um peru como aquele do ano passado, quanto a isso podia confiar. "Eis como são as mulheres", pensou Curcio. Mas desta vez ele jurou que abriria bem os olhos, e não se deixaria enganar pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de nenhum peru, fosse ele aristocrático ou plebeu.

* Escritor italiano, nascido em Roma (1907-1990). É um dos grandes escritores do século XX. Romancista consagrado com títulos como “Os Indiferentes”, “A Romana” e “As Ambições Frustradas”, entre outros.

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