sábado, 19 de março de 2011




O Bruxo, o feiticeiro
e o espantamento

* Por Anna Lee


Antes de começar o texto propriamente dito, que será mais uma transcrição do que uma redação original, me sinto obrigada a fazer algumas considerações. Não que tais considerações contenham algo de novo. Provavelmente não. Mas talvez ajudem – mais a mim do que ao leitor – a entender a origem do meu espantamento.

Sim. O espantamento a que me refiro no título é meu. Todo meu. Ingenuidade, dirão alguns. Pode ser. Mas ainda assim espantamento. Surpresa incontida diante do inesperado, que quer ser, senão compartilhada, pelo menos espalhada.

O bruxo é Machado de Assis. “Bruxo do Cosme Velho”. Assim foi chamado por Carlos Drummond de Andrade e, desde então, muitos repetiram. Era mulato, gago e epilético, um gênio, na opinião de muitas pessoas, inclusive na minha – o que pouca diferença faz.

Não fosse pela penetração radical na condição humana que faz excretar de seus textos o amor, o ciúme, a morte, a afirmação pessoal, a cobiça, a vaidade, o jogo da verdade e da mentira, do absoluto e do relativo; somente os olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada, que deu a Capitu já seriam motivos suficientes para ser lembrado para sempre como um dos maiores escritores da literatura brasileira.

Feiticeiro é Guimarães Rosa. Feiticeiro das palavras. Fez o que quis com a língua portuguesa. Inventor de signos, significados e significantes. Elegeu idiomas e fez cruzamentos impensáveis com o português. Criou um linguajar brasileiro de cujos encantamento e potências ocultas era senhor absoluto.

Feiticeiro que era, teve a superstição e o misticismo como companheiros por boa parte da vida. Acreditava na força da lua e tinha absoluto respeito pelos mistérios da umbanda, da quimbanda, do kardecismo e de qualquer outra crença que lhe fosse apresentada. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal-estar.

De 1938 a 1942, viveu na Alemanha, como cônsul-adjunto em Hamburgo. Neste período, durante a Segunda Guerra, passou pela experiência a qual atribuía o surgimento de seu lado supersticioso. Foi salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio.

Durante essa época, a que esteve na Alemanha, dedicou-se a fazer anotações em cadernos, que não eram exatamente diários. Mais do que relatos do cotidiano, registrava impressões de tudo e de todos. Entre elas, uma de 1939, a qual intitulou “Notas, de memória, após apressada leitura do Brás Cubas de Machado de Assis” e que, agora, passo a transcrever. Motivo de meu espantamento:

“1 – M. de A. gosta, usa e abusa, da construção ternária: silogística ou hegeliana – premissa maior – premissa menor – conclusão; ou tese – antítese – síntese. A cada passo a gente esbarra com vestígios desse vezo, quando não com a armação completa, a qual a pode ser decomposta de várias maneira: um pulinho para a direita, outro para a esquerda, outro para a frente... quando não para trás. ETC”.

“2 – Adquiri certeza, quase absoluta, de que ele, antes mesmo de compor os seus livros, ia anotando: pensamentos, frases etc., em livro ou em cadernos especiais, espécie de surrão ou alforje, de onde sacava, aos punhados, ou pinçava, um a um, os elementos de reserva que houvessem resistido ao tempo conservando-se bem. (Processo aliás muito louvável. Tanto quanto o hábito de compulsar dicionários, visível em M. A.)”.

“3 – De verdadeiramente interessante, é no livro: a) o capítulo: ‘É minha’, onde o autor descobre a ‘lei da equivalência das janelas’; b) o capítulo ‘O momento oportuno’, onde descreve: ‘Não há amor possível sem a oportunidade dos sujeitos’; c) a filosofia humanitática (M%) (em suas anotações, Guimarães Rosa usa em vários momentos este sinal que significa ‘meu cem por cento) de Quincas Borba”.

“4 – Não pretendo ler mais Machado de Assis, a não ser nos seus afamados contos. Talvez, também o começo de Dom Casmurro, do qual já li a crítica que me despertou a curiosidade”.

“Não pretendo mais lê-lo, por vários motivos: acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura. Há trechos bons, mas mesmo assim inferiores aos dos autores ingleses que lhe serviram de modelo. Quanto às idéias, nada mais do que uma desoladora dissecação do egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma do egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes. Bem, basta; chega de Machado de Assis. Hamburgo, 15 de agosto de 1939”.

Em 1908, o bruxo morreu. No mesmo ano, o feiticeiro nasceu. Machado em 29 de setembro, na sua velha casa do bairro carioca do Cosme Velho. Estava muito doente, solitário e triste com a morte de Carolina, sua mulher.

Guimarães, em 27 de junho, na cidadezinha mineira de Cordisburgo. Três dias antes da morte, isso em 19 de novembro de 1967, decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras, a casa de Machado de Assis. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: “... a gente morre é para provar que viveu”.

Meu espantamento continua intacto. Agora, senão compartilhado, espalhado.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.

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