sábado, 22 de janeiro de 2011




Morri, enfim


* Por José Paulo Lanyi


... E quando lá cheguei, na mesma Zona Neutra que já descrevera em “Deus me Disse que Não Existe”, deparei com uma máquina de calcular de uns dois elefantes de altura por uns três camelos de largura e umas vinte e cinco centopéias de... Uma calculadora gigante. Nada mais.

Eu estava nu. Não exatamente como eu havia nascido, aí no lugarzinho em que ainda vivem os meus leitores. Eu estava nu, porém vestido. Antes que você me venha com aquela velha e infame anedota, “vamo-nos, porém vestidos”, esclareço a minha condição: havia roupa sobre o corpo de fantasma, até mesmo alguns trocados que esqueceram no meu terno. Mas, como diria o publicitário da Coca-Cola, Deus é isso aí... Você nasce sem nada e, se não viver de acordo com os costumes da edição mais recente da Bíblia local, morre devendo e haverá de pagar caro por isso. Não tente disfarçar, não adianta: a empresa de cobrança divina é implacável, de longe a pior que poderia existir. Um dia você sentirá saudade dos carnezinhos atrasados das Casas Bahia ou das Lojas Marabras.

Olhei em volta e fiquei intrigado. Sabia que estava morto, pois, depois do derradeiro, a voz da intuição retumba, como aquelas músicas dos caminhões de gás. Se você viveu nos conformes, ouvirá, sem julgamento, um “Parabéns, agora desfrutareis de todas as delícias do Meu Reino” (note o tempo verbal, no Céu tudo é convosco, embora eu não saiba exatamente o que isso quer dizer).

Eu, não, depois de morrer só ouvi um “Agora eu quero ver, desgraçado!”.
Bem, acordei na Zona Neutra e lá fiquei, tentando me entender. “Que falta faz um psicólogo ou uma namorada nova...”, pensei, entre um e outro instante de sonolência, lembrando-me dos divãs que nunca freqüentei e das camas que, como os bares, sempre buscaram saber quem eu fui.

Levantei-me, entorpecido, e, num reflexo de autopreservação, verifiquei a minha masculinidade. Ela ainda estava lá, graças a Deus. Aos sorrisos, cocei o que tinha que coçar e, cinqüenta e três graus a oeste, dei de cara com a calculadora.

Aproximei-me. De início, nada vi de exótico. Estavam todos lá: os números, o sinal de mais, o de menos, o de vezes, o de dividir, até o da porcentagem. Percebi, no entanto, um algo mais. No canto inferior direito, havia uma inscrição: “Insira aqui a sua moeda de dez centavos”. Apalpei os bolsos e achei três dinheiros: um de cinqüenta centavos, dois de um real. Coloquei a moeda menor, quando, mais abaixo, uma outra frase apareceu: “Obrigado por contratar os nossos serviços. Nunca devolvemos o troco. Por favor, digite a sua senha”.
Que senha? Como eu não tinha nenhuma, digitei a do banco, aquela que, afinal, me ajudara a morrer. Nisso, a calculadora toda se acendeu e, num dos cantos da Zona Neutra, uma porta abriu-se ao meio, como naquelas naves do “Jornada nas Estrelas”. Em meio à fumaça de gelo seco, apareceu o Chacrinha com a sua buzina. Sim, ele mesmo, o Abelardo Barbosa.

O Chacrinha foi logo dizendo: “Alô, atenção! Esta é a calculadora do Céu e do Infernooooooo! Agora você vai saber para onde vaaaaaaaaai! (e buzinou, com aquela risada inconfundível).
- Chacrinha! Que surpresa! Como é que isso funciona?
- Você já digitou a sua senha...
- Usei a do banco.
- É a mesma coisa! Deus gosta de banqueiro! Fez até convênio, aêêêêêêêêêêêê!!!! (fom!, fom!, fom!)
- Legal, Chacrinha. E agora, o que é que eu faço?
- Você, nada. Agora é a minha vez.


Ele digitou outra senha. Luzes se acenderam e todas as teclas da máquina passaram a piscar. Nisso, deu-me um bloco e uma caneta e pediu-me que anotasse os números da minha vida.
- Vamos lá, meu rapaz! Primeiro, quantas vezes você mentiu na vida! (acenderam, na ordem, os números 9 e 3). Anote aí: 93!
- 93? Mas eu não menti tanto assim...
- Mentiu, siiiiiiiiiiiiiiim! (respondeu, às gargalhadas- fom!fom!fom!).
- Agora, quantas vezes você roubou! (acenderam os números 1 e 7). Anote aí: 17!
- Mas isso está errado!
- Roubou no War, no pôquer e, quando criança, os chaveiros dos próprios pais, as figurinhas dos colegas e...
- Tá bom, tá bom! Mas nem criança escapa!- comentei, incrédulo...
- Conheço muita criança melhor! Agora, quantas vezes galinhou! Anote! 1.234 vezes, aêêêêêêêêêêêêêêê!!!! (fom! fom!fom!)
- A próxima, a próxima...
- Quantas vezes xingou! 1.347.967, aêêêêêêêêêêêêêêêêêêê!!!!! (voltou-se para uma platéia imaginária) Xingou ou não xingooooooooooooou, aêêêêêêêêêêêêêê?
- A próxima, Chacrinha, a próxima!
- Quantas vezes blasfemou! 6.235, aêêêêêêêêêêêêêêêê! (fom!fom!fom!fom!) Vai se ferrar logo maaaaaaaaaaaais (fom!fom!fom!fom!). Agora... Alô, atenção! Quantas vezes...
- Ô, Chacrinha, não quero saber do resto! Se tiver que ser julgado, que seja, das coisas ruins me ocupo depois! Mas essa máquina aí não conta as coisas boas que eu fiz? Quero ver as coisas boas!
- Com toda certeza! É só o senhor me dar uma nota de cem dólares!
- Que cem dólares, Chacrinha, que cem dólares? Eu morri, Chacrinha, como é que eu vou ter cem dólares?
- Isso não é problema meu, não é dele, não é dela, não é de ninguém! Isso é problema seu! Se quiser saber das coisas boas, coloque a nota nesse buraco aêêêêêêêêêêêêêêêêêêê!!!! (fom!, fom!, fom!, fom!).

(Na semana que vem, conto o que tive que fazer para receber um tratamento justo no espaço qualquer entre a Amargura e a Felicidade de Todo o Sempre).


(*) Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe" e da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog). Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a sinfonia Atlântica.

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