sábado, 31 de julho de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Ano de Excelência

Coluna Direto do Arquivo – Paulinho Assunção, capítulo do livro “Cartas da Califórnia”.

Coluna Clássicos – Isaac Asimov, conto “A última pergunta”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “O dia em que o mar floresceu”

Coluna Porta Aberta – Leda Selma, crônica “A Copa do sonho, isto é, do som”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “Crítico literário e de arte”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Ano de excelência

Caríssimos leitores, boa tarde.
O ano de 1982, em que foi disputada a Copa do Mundo da Espanha, marcou um momento brilhante da minha vida (e também da Seleção, embora não coroado com o título). A muitos leitores, provavelmente, de pouco (ou de nada) interessarão essas circunstâncias tão particulares que me envolvem e que descrevo resumidamente na introdução dos relatos de cada Mundial. Ocorre que tais relatos têm, lá, sua razão de ser. Visam, sobretudo, a contextualizar estas reminiscências, que são bastante pessoais.
Ademais, como William Shakespeare observou com muita argúcia, em certa ocasião, “nada interessa mais ao ser humano do que a vida de outro ser humano”. Isso é o que, na verdade, permeia e caracteriza toda a verdadeira e boa comunicação. É um aspecto que está, ou deve estar, sempre subjacente nesse processo de contato entre seres inteligentes e produtivos.
O ano de 1982 foi, para mim, de trabalho, de muito trabalho, de intensíssimo trabalho. Eu estava, na oportunidade, com 39 anos e meio, e em pleno vigor, físico, mental e intelectual. Minha família tinha crescido. No ano anterior à Copa, havia nascido meu filho Alexei, o terceiro da “turminha brava”, que seria completada, em 1983, com o nascimento da minha caçula.
Eu trabalhava, na ocasião, há já bom tempo, no quase centenário e, portanto, tradicional jornal campineiro “Diário do Povo”. Não fazia muito, ele havia se “fundido” com o “Jornal de Hoje”, que deixara de circular, e mudara de dono; passara a pertencer ao ex-prefeito, ex-senador e ex-governador do Estado de São Pulo, Orestes Quércia.
Há dois anos, eu havia retomado a carreira de radialista, abruptamente interrompida em meados de 1964, pós-golpe militar. Trabalhava na única grande empresa radiofônica paulista em que não havia trabalhado nos anos 60: a Rede Bandeirantes. Fora contratado, porém, não propriamente pela emissora líder do grupo, mas por uma afiliada, a então denominada Educadora de Campinas.
Hoje ela mudou de nome. Trocou sua denominação tradicional, que ostentou por décadas, pela de Rádio Bandeirantes Campinas. Tenho imenso orgulho de haver trabalhado nessa grande empresa de radiodifusão e convivido com muitos profissionais que, antes de se tornarem colegas de trabalho, eram meus ídolos, como Pereira Neto, Renato Leal (atualmente na Rede Globo), Roberto Diogo, Wagner Ferreira, Jaércio Barbosa, Pereira Esmeriz, Mário Celso, Ariovaldo Izaac (meu companheiro também de Diário do Povo) e Brasil de Oliveira, entre tantos.
Na época, reitero, eu trabalhava muito, demais, além do que a prudência recomendava. Contudo, como fazia o que gostava, isto é, me comunicar com ouvintes e com leitores, não sentia cansaço físico ou mental e muito menos estresse.
Minha jornada laboral era frenética, sem nenhum dia de descanso, de segunda a segunda, meses e anos a fio. Começava ao meio-dia, quando entrava na Educadora, de onde só saía às 19 horas em ponto, quando da transmissão da “Voz do Brasil”, que na época era obrigatória nesse horário. Mas não ia para casa. Seguia direto para a redação do “Diário do Povo”, de onde só saía em alta madrugada.
No jornal, tinha horário de entrada, como todo funcionário, mas não de saída. Saía apenas quando a edição do dia terminava, que tanto poderia ser à meia-noite, quanto as duas, três ou quatro horas da manhã do dia seguinte. Nesse período, nunca consegui chegar em casa antes das 4h30 da madrugada.
Meu esforço era bem-remunerado, é verdade. Eu precisava ganhar bem. Afinal, tinha família grande, o que implicava em enormes despesas e ainda mais numa época de inflação galopante. Além de contar com dois empregos fixos, com carteira de trabalho assinada, fazia uma infinidade de frilas, o que ajudava a engordar minha conta bancária.
Estava determinado a me arrebentar de trabalhar, se fosse preciso, para que jamais faltasse coisa alguma aos meus filhos. Felizmente, nunca faltou. Eles sempre tiveram do bom e do melhor. E estudavam nas melhores escolas que o dinheiro pudesse custear. Tudo isso graças ao jornalismo. Eu cavava, a ferro e fogo, com garra e determinação, meu espaço na imprensa e na sociedade campineira.
Um ano antes, em 1981, eu havia largado o curso de Direito. Mas ao contrário do que ocorrera anos antes, com a Medicina, esse abandono fora de caso pensado e não se deveu à falta de recursos financeiros. Ocorreu, somente, porque eu já havia aprendido o que me propusera a aprender.
Quando passei no novo vestibular (havia sido aprovado anos antes em Medicina, como relatei em outra parte destas reminiscências), ou seja, no de Direito, e numa das três melhores faculdades do gênero do País, a da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, disse, para parentes e amigos, que não tinha a mínima intenção de advogar. Nunca, sequer remotamente, cogitei em deixar o jornalismo. E não deixei mesmo, até hoje.
O que eu pretendia era expandir conhecimentos na área de ciências humanas. E para o quê? Para exercer minhas funções jornalísticas com mais propriedade e qualidade. Na oportunidade, ninguém acreditou que minha intenção fosse mesmo essa. Mas fui rigorosamente coerente com o que disse que faria, ao desistir do curso de Direito somente no final do quarto ano.
Foi exatamente após essa desistência que voltei ao rádio. Antes de desistir do curso, eu costumava brincar com os colegas de redação do “Diário do Povo”, dizendo que era “filho da PUCC” (a sigla da universidade), para espanto geral, dos que entendiam mal o que eu dizia e achavam que eu estava me xingando. O que aprendi na Faculdade de Direito não tem preço. Ampliou, em muito, meu horizonte mental e minha visão de cidadania, de direitos e deveres e, também, de jornalismo.
Trabalhei na redação do “Diário do Povo” com jornalistas notáveis, principalmente na área de esportes. Posso citar de memória, sem precisar pensar muito, Eduardo Mattos, Élcio Paiola, Ismael Pfeiffer, Arnaldo Boccato, Ariovaldo Izaac, Brasil de Oliveira e muitos outros excelentes profissionais, cujos nomes me escapam.
De todos os lugares em que já trabalhei, esse é um dos que guardo na memória com o maior carinho. Engraçado como certas coincidências nos aproximam mais de determinadas empresas ou organizações sem que sequer nos apercebamos. O aniversário do “Diário do Povo” coincide com o meu, em 20 de janeiro. Por isso, nos anos que lá trabalhei, nunca faltou o tradicional bolo, para celebrar a data, doado, via de regra, por padarias da cidade anunciantes do jornal.
E eu zoava muito com isso. Saía dizendo, pelos corredores, a todos os colegas com os quais cruzava, que o bolo que eles iriam comer fora doado por mim. Claro que não era verdade. Todavia, muitos companheiros acreditavam nisso e vinham me abraçar, parabenizar e agradecer. E eu me divertia muito com essa ingênua credulidade.

Boa leitura.

O Editor.



Cartas da Califórnia

* Por Paulinho Assunção


OS PRENÚNCIOS


O Homem-Segunda-Feira passou hoje com a Mulher-Domingo pela avenida Kansas. O homem ia bitter; a mulher ia sweet.

Acompanhei-os por duas ou três quadras, de longe. O homem parece que tinha encontro marcado com o presidente dos Estados Unidos da América. A mulher, bem, a mulher estava muito poetizável.

Louçã, assim do modo como só um mineiro carregado de barroco poderia vê-la.

O homem, imperial; a mulher, uma housewife sobre doze centímetros de salto, saída de um banho de sais.

Ah, tem horas que os meus olhos só captam prenúncios: o Homem-Segunda-Feira, como se invocasse catástrofes; a Mulher-Domingo, pronta para ser levada pelos anjos.

O que posso fazer se a Califórnia muitas vezes é o próprio estado das bestitudes?


AS PALAVRAS-FRUITAS


Minha avó, aos 14 anos, deixou a cidade goiana de Anápolis sobre o silhão de um cavalo e viajou um mês e meio para se casar com o meu avô, na Guarda dos Ferreiros, em Minas Gerais.

Ela chorava e chorava.

Meu avô era homem rude, comandante de tropas, tenho dele uma fotografia desbotada. Morreu aos 40 e poucos quando vinha da roça com um alforje cheio de feijão colhido de véspera.

Minha avó hoje tem cem anos.

Não fala nem reconhece mais ninguém. Só chora. Ela sempre teve lágrimas muito fáceis, as chamadas lágrimas torrenciais.

Com ela eu aprendi certos arcaísmos da língua portuguesa. Por exemplo, a palavra "fruita", palavra toda amaciada por este "i" incrustado na sua polpa.

Hoje de madrugada, quando esperei por uma trovoada distante que sacudisse esses céus da Califórnia, uma trovoada como aquelas que anunciam no Alto Paranaíba as primeiras chuvas de outubro, aquelas chuvas de banda, aquelas chuvas-lavadeiras, pois foi nesta madrugada que pensei nas palavras como fruitas, essas palavras da língua portuguesa que nos enchem a boca como as repentinas cheias de um rio.


(Do livro inédito Cartas da Califórnia)

* Poeta, ficcionista e jornalista com mais de uma dezena de livros publicados. Foi membro da Comissão de Redação do Suplemento Literário do Minas Gerais e repórter na sucursal mineira da Agência Estado. Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 1983 (Poesia) e o Prêmio Minas de Cultura (Guimarães Rosa), categoria contos, em 1998.



A última pergunta

* Por Isaac Asimov



A última pergunta foi feita pela primeira vez, meio que de brincadeira, no dia 21 de maio de 2061, quando a humanidade dava seus primeiros passos em direção à luz. A questão nasceu como resultado de uma aposta de cinco dólares movida a álcool, e aconteceu da seguinte forma...
Alexander Adell e Bertram Lupov eram dois dos fiéis assistentes de Multivac. Eles conheciam melhor do que qualquer outro ser humano o que se passava por trás das milhas e milhas da carcaça luminosa, fria e ruidosa daquele gigantesco computador. Ainda assim, os dois homens tinham apenas uma vaga noção do plano geral de circuitos que há muito haviam crescido além do ponto em que um humano solitário poderia sequer tentar entender.
Multivac ajustava-se e corrigia-se sozinho. E assim tinha de ser, pois nenhum ser humano poderia fazê-lo com velocidade suficiente, e tampouco da forma adequada. Deste modo, Adell e Lupov operavam o gigante apenas sutil e superficialmente, mas, ainda assim, tão bem quanto era humanamente possível. Eles o alimentavam com novos dados, ajustavam as perguntas de acordo com as necessidades do sistema e traduziam as respostas que lhes eram fornecidas. Os dois, assim como seus colegas, certamente tinham todo o direito de compartilhar da glória que era Multivac.
Por décadas, Multivac ajudou a projetar as naves e enredar as trajetórias que permitiram ao homem chegar à Lua, Marte e Vênus, mas para além destes planetas, os parcos recursos da Terra não foram capazes de sustentar a exploração. Fazia-se necessária uma quantidade de energia grande demais para as longas viagens. A Terra explorava suas reservas de carvão e urânio com eficiência crescente, mas havia um limite para a quantidade de ambos.

No entanto, lentamente Multivac acumulou conhecimento suficiente para responder questões mais profundas com maior fundamentação, e em 14 de maio de 2061, o que não passava de teoria tornou-se real.
A energia do sol foi capturada, convertida e utilizada diretamente em escala planetária. Toda a Terra paralisou suas usinas de carvão e fissões de urânio, girando a alavanca que conectou o planeta inteiro a uma pequena estação, de uma milha de diâmetro, orbitando a Terra à metade da distância da Lua. O mundo passou a correr através de feixes invisíveis de energia solar.
Sete dias não foram o suficiente para diminuir a glória do feito e Adell e Lupov finalmente conseguiram escapar das funções públicas e encontrar-se em segredo onde ninguém pensaria em procurá-los, nas câmaras desertas subterrâneas onde se encontravam as porções do esplendoroso corpo enterrado de Multivac. Subutilizado, descansando e processando informações com estalos preguiçosos, Multivac também havia recebido férias, e os dois apreciavam isso. A princípio, eles não tinham a intenção de incomodá-lo.
Haviam trazido uma garrafa consigo e a única preocupação de ambos era relaxar na companhia do outro e da bebida.
"É incrível quando você pára pra pensar…," disse Adell. Seu rosto largo guardava as linhas da idade e ele agitava o seu drink vagarosamente, enquanto observava os cubos de gelo nadando desengonçados. "Toda a energia que for necessária, de graça, completamente de graça! Energia suficiente, se nós quiséssemos, para derreter toda a Terra em uma grande gota de ferro líquido, e ainda assim não sentiríamos falta da energia utilizada no processo. Toda a energia que nós poderíamos um dia precisar, para sempre e eternamente."
Lupov movimentou a cabeça para os lados. Ele costumava fazer isso quando queria contrariar, e agora ele queria, em parte porque havia tido de carregar o gelo e os utensílios. "Eternamente não," ele disse.
"Ah, diabos, quase eternamente. Até o sol se apagar, Bert."
"Isso não é eternamente."
"Está bem. Bilhões e bilhões de anos. Dez bilhões, talvez. Está satisfeito?"
Lupov passou os dedos por entre seus finos fios de cabelo como que para se assegurar de que o problema ainda não estava acabado e tomou um gole gentil da sua bebida. "Dez bilhões de anos não é a eternidade"
"Bom, vai durar pelo nosso tempo, não vai?"
"O carvão e o urânio também iriam."
"Está certo, mas agora nós podemos ligar cada nave individual na Estação Solar, e elas podem ir a Plutão e voltar um milhão de vezes sem nunca nos preocuparmos com o combustível. Você não conseguiria fazer isso com carvão e urânio. Se não acredita em mim, pergunte ao Multivac."
"Não preciso perguntar a Multivac. Eu sei disso"
"Então trate de parar de diminuir o que Multivac fez por nós," disse Adell nervosamente, "Ele fez tudo certo".
"E quem disse que não fez? O que estou dizendo é que o sol não vai durar para sempre. Isso é tudo que estou dizendo. Nós estamos seguros por dez bilhões de anos, mas e depois?" Lupov apontou um dedo levemente trêmulo para o companheiro. "E não venha me dizer que nós iremos trocar de sol"
Houve um breve silêncio. Adell levou o copo aos lábios apenas ocasionalmente e os olhos de Lupov se fecharam. Descansaram um pouco, e quando suas pálpebras se abriram, disse, "Você está pensando que iremos conseguir outro sol quando o nosso estiver acabado, não está?"
"Não, não estou pensando."
"É claro que está. Você é fraco em lógica, esse é o seu problema. É como o personagem da história, que, quando surpreendido por uma chuva, corre para um grupo de árvores e abriga-se embaixo de uma. Ele não se preocupa porque quando uma árvore fica molhada demais, simplesmente vai para baixo de outra."
"Entendi," disse Adell. "Não precisa gritar. Quando o sol se for, as outras estrelas também terão se acabado."
"Pode estar certo que sim" murmurou Lupov. "Tudo teve início na explosão cósmica original, o que quer que tenha sido, e tudo terá um fim quando as estrelas se apagarem. Algumas se apagam mais rápido que as outras. Ora, as gigantes não duram cem milhões de anos. O sol irá brilhar por dez bilhões de anos e talvez as anãs permaneçam assim por duzentos bilhões. Mas nos dê um trilhão de anos e só restará a escuridão. A entropia deve aumentar ao seu máximo, e é tudo."
"Eu sei tudo sobre a entropia," disse Adell, mantendo a sua dignidade.
"Duvido que saiba."
"Eu sei tanto quanto você."
"Então você sabe que um dia tudo terá um fim."
"Está certo. E quem disse que não terá?"
"Você disse, seu tonto. Você disse que nós tínhamos toda a energia de que precisávamos, para sempre. Você disse ..para sempre..."
Era a vez de Adell contrariar. "Talvez nós possamos reconstruir as coisas de volta um dia," ele disse.
"Nunca."
"Por que não? Algum dia."
"Nunca"
"Pergunte a Multivac."
"Você pergunta a Multivac. Eu te desafio. Aposto cinco dólares que isso não pode ser feito."
Adell estava bêbado o bastante para tentar, e sóbrio o suficiente para construir uma sentença com os símbolos e as operações necessárias em uma questão que, em palavras, corresponderia a esta: a humanidade poderá um dia sem nenhuma energia disponível ser capaz de reconstituir o sol a sua juventude mesmo depois de sua morte?
Ou talvez a pergunta possa ser posta de forma mais simples da seguinte maneira: A quantidade total de entropia no universo pode ser revertida?
Multivac mergulhou em silêncio. As luzes brilhantes cessaram, os estalos distantes pararam.
E então, quando os técnicos assustados já não conseguiam mais segurar a respiração, houve uma súbita volta à vida no visor integrado àquela porção de Multivac. Cinco palavras foram impressas: "DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
Na manhã seguinte, os dois, com dor de cabeça e a boca seca, já não lembravam do incidente.* * *
Jerrodd, Jerrodine, e Jerrodette I e II observavam a paisagem estelar no visor se transformar enquanto a passagem pelo hiperespaço consumava-se em uma fração de segundos. De repente, a presença fulgurante das estrelas deu lugar a um disco solitário e brilhante, semelhante a uma peça de mármore centralizada no televisor.
"Este é X-23," disse Jerrodd em tom de confidência. Suas mãos finas se apertaram com força por trás das costas até que as juntas ficassem pálidas.
As pequenas Jerodettes haviam experimentado uma passagem pelo hiperespaço pela primeira vez em suas vidas e ainda estavam conscientes da sensação momentânea de tontura. Elas cessaram as risadas e começaram a correr em volta da mãe, gritando, "Nós chegamos em X-23, nós chegamos em X-23!"
"Quietas, crianças." Disse Jerrodine asperamente. "Você tem certeza Jerrodd?"
"E por que não teria?" Perguntou Jerrodd, observando a protuberância metálica que jazia abaixo do teto. Ela tinha o comprimento da sala, desaparecendo nos dois lados da parede, e, em verdade, era tão longa quanto a nave.
Jerrodd tinha conhecimentos muito limitados acerca do sólido tubo de metal. Sabia, por exemplo, que se chamava Microvac, que era permitido lhe fazer questões quando necessário, e que ele tinha a função de guiar a nave para um destino pré-estabelecido, além de abastecer-se com a energia das várias Estações Sub-Galácticas e fazer os cálculos para saltos no hiperespaço.
Jerrodd e sua família tinham apenas de aguardar e viver nos confortáveis compartimentos da nave. Alguém um dia disse a Jerrodd que as letras "ac" na extremidade de Microvac significavam "automatic computer" em inglês arcaico, mas ele mal era capaz de se lembrar disso.
Os olhos de Jerrodine ficaram úmidos quando observava o visor. "Não tem jeito. Ainda não me acostumei com a idéia de deixar a Terra."
"Por que, meu deus?" inquiriu Jerrodd. "Nós não tínhamos nada lá. Nós teremos tudo em X-23. Você não estará sozinha. Você não será uma pioneira. Há mais de um milhão de pessoas no planeta. Por Deus, nosso bisneto terá que procurar por novos mundos porque X-23 já estará super povoado." E, depois de uma pausa reflexiva, "No ritmo em que a raça tem se expandido, é uma benção que os computadores tenham viabilizado a viagem interestelar."
"Eu sei, eu sei", disse Jerrodine com descaso.
Jerrodete I disse prontamente, "Nosso Microvac é o melhor de todos."
"Eu também acho," disse Jerrodd, alisando o cabelo da filha.
Ter um Microvac próprio produzia uma sensação aconchegante em Jerrodd e o deixava feliz por fazer parte daquela geração e não de outra. Na juventude de seu pai, os únicos computadores haviam sido máquinas monstruosas, ocupando centenas de milhas quadradas, e cada planeta abrigava apenas um. Eram chamados de ACs Planetários. Durante um milhar de anos, eles só fizeram aumentar em tamanho, até que, de súbito, veio o refinamento. No lugar dos transistores, foram implementadas válvulas moleculares, permitindo que até mesmo o maior dos ACs Planetários fosse reduzido à metade do volume de uma espaçonave.
Jerrodd sentiu-se elevado, como sempre acontecia quando pensava que seu Microvac pessoal era muitas vezes mais complexo do que o antigo e primitivo Multivac que pela primeira vez domou o sol, e quase tão complexo quanto o AC Planetário da Terra, o maior de todos, quando este solucionou o problema da viagem hiperespacial e tornou possível ao homem chegar às estrelas.
"Tantas estrelas, tantos planetas," pigarreou Jerrodine, ocupada com seus pensamentos. "Eu acho que as famílias estarão sempre à procura de novos mundos, como nós estamos agora."
"Não para sempre," disse Jerrodd, com um sorriso. "A migração vai terminar um dia, mas não antes de bilhões de anos. Muitos bilhões. Até as estrelas têm um fim, você sabe. A entropia precisa aumentar."
"O que é entropia, papai?" Jerrodette II perguntou, interessada.

"Entropia, meu bem, é uma palavra para o nível de desgaste do Universo. Tudo se gasta e acaba, foi assim que aconteceu com o seu robozinho de controle remoto, lembra?"
"Você não pode colocar pilhas novas, como em meu robô?"
"As estrelas são as pilhas do universo, querida. Uma vez que elas estiverem acabadas, não haverá mais pilhas."

Jerrodette I se prontificou a responder. "Não deixe, papai. Não deixe que as estrelas se apaguem."
"Olha o que você fez," sussurrou Jerrodine, exasperada.
"Como eu ia saber que elas ficariam assustadas?" Jerrodd sussurrou de volta.
"Pergunte ao Microvac," propôs Jerrodette I. "Pergunte a ele como acender as estrelas de novo."

"Vá em frente," disse Jerrodine. "Ele vai aquietá-las." (Jerrodette II já estava começando a chorar.)
Jerrodd se mostrou incomodado. "Bem, bem, meus anjinhos, vou perguntar a Microvac. Não se preocupem, ele vai nos ajudar."
Ele fez a pergunta ao computador, adicionando, "Imprima a resposta"
Jerrodd olhou para a o fino pedaço de papel e disse, alegremente, "Viram? Microvac disse que irá cuidar de tudo quando a hora chegar, então não há porque se preocupar."
Jerrodine disse, "E agora crianças, é hora de ir para a cama. Em breve nós estaremos em nosso novo lar."
Jerrodd leu as palavras no papel mais uma vez antes de destruí-lo: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
Ele deu de ombros e olhou para o televisor, X-23 estava logo à frente.
* * *
VJ-23X de Lameth fixou os olhos nos espaços negros do mapa tridimensional em pequena escala da Galáxia e disse, "Me pergunto se não é ridículo nos preocuparmos tanto com esta questão."
MQ-17J de Nicron balançou a cabeça. "Creio que não. No presente ritmo de expansão, você sabe que a galáxia estará completamente tomada dentro de cinco anos."
Ambos pareciam estar nos seus vinte anos, ambos eram altos e tinham corpos perfeitos.
"Ainda assim," disse VJ-23X, "hesitei em enviar um relatório pessimista ao Conselho Galáctico."
"Eu não consigo pensar em outro tipo de relatório. Agite-os. Nós precisamos chacoalhá-los um pouco."
VJ-23X suspirou. "O espaço é infinito. Cem bilhões de galáxias estão a nossa espera. Talvez mais."
"Cem bilhões não é o infinito, e está ficando menos ainda a cada segundo. Pense! Há vinte mil anos, a humanidade solucionou pela primeira vez o paradigma da utilização da energia solar, e, poucos séculos depois, a viagem interestelar tornou-se viável. A humanidade demorou um milhão de anos para encher um mundo pequeno e, depois disso, quinze mil para abarrotar o resto da galáxia. Agora a população dobra a cada dez anos…"
VJ-23X interrompeu. "Devemos agradecer à imortalidade por isso."
"Muito bem. A imortalidade existe e nós devemos levá-la em conta. Admito que ela tenha o seu lado negativo. O AC Galáctico já solucionou muitos problemas, mas, ao fornecer a resposta sobre como impedir o envelhecimento e a morte, sobrepujou todas as outras conquistas."
"No entanto, suponho que você não gostaria de abandonar a vida."
"Nem um pouco." Respondeu MQ-17J, emendando. "Ainda não. Eu não estou velho o bastante. Você tem quantos anos?"
"Duzentos e vinte e três, e você?"
"Ainda não cheguei aos duzentos. Mas, voltando à questão; a população dobra a cada dez anos, uma vez que esta galáxia estiver lotada, haverá uma outra cheia dentro de dez anos. Mais dez e teremos ocupado por inteiro mais duas galáxias. Outra década e encheremos mais quatro. Em cem anos, contaremos um milhar de galáxias transbordando de gente. Em mil anos, um milhão de galáxias. Em dez mil, todo o universo conhecido. E depois?
VJ-23X disse, "Além disso, há um problema de transporte. Eu me pergunto quantas unidades de energia solar serão necessárias para movimentar as populações de uma galáxia para outra."
"Boa questão. No presente momento, a humanidade consome duas unidades de energia solar por ano."
"Da qual a maior parte é desperdiçada. Afinal, nossa galáxia sozinha produz mil unidades de energia solar por ano e nós aproveitamos apenas duas."
"Certo, mas mesmo com 100% de eficiência, podemos apenas adiar o fim. Nossa demanda energética tem crescido em progressão geométrica, de maneira ainda mais acelerada do que a população. Ficaremos sem energia antes mesmo que nos faltem galáxias. É uma boa questão. De fato uma ótima questão."
"Nós precisaremos construir novas estrelas a partir do gás interestelar."
"Ou a partir do calor dissipado?" perguntou MQ-17J, sarcástico.
"Pode haver algum jeito de reverter a entropia. Nós devíamos perguntar ao AC Galáctico."VJ-23X não estava realmente falando sério, mas MQ-17J retirou o seu Comunicador-AC do bolso e colocou na mesa diante dele.
"Parece-me uma boa idéia," ele disse. "É algo que a raça humana terá de enfrentar um dia."
Ele lançou um olhar sóbrio para o seu pequeno Comunicador-AC. Tinha apenas duas polegadas cúbicas e nada dentro, mas estava conectado através do hiperespaço com o poderoso AC Galáctico que servia a toda a humanidade. O próprio hiperespaço era parte integral do AC Galáctico.
MQ-17J fez uma pausa para pensar se algum dia em sua vida imortal teria a chance de ver o AC Galáctico. A máquina habitava um mundo dedicado, onde uma rede de raios de força emaranhados alimentava a matéria dentro da qual ondas de submésons haviam tomado o lugar das velhas e desajeitadas válvulas moleculares. Ainda assim, apesar de seus componentes etéreos, o AC Galáctico possuía mais de mil pés de comprimento.
De súbito, MQ-17J perguntou para o seu Comunicador-AC, "Poderá um dia a entropia ser revertida?"
VJ-23X disse, surpreso, "Oh, eu não queria que você realmente fizesse essa pergunta."
"Por que não?"
"Nós dois sabemos que a entropia não pode ser revertida. Você não pode construir uma árvore de volta a partir de fumaça e cinzas."
"Existem árvores no seu mundo?" Perguntou MQ-17J.
O som do AC Galáctico fez com que silenciassem. Sua voz brotou melodiosa e bela do pequeno Comunicador-AC em cima da mesa. Dizia: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
VJ-23X disse, "Viu!"
Os dois homens retornaram à questão do relatório que tinham de apresentar ao conselho galáctico.
* * *
A mente de Zee Prime navegou pela nova galáxia com um leve interesse nos incontáveis turbilhões de estrelas que pontilhavam o espaço. Ele nunca havia visto aquela galáxia antes. Será que um dia conseguiria ver todas? Eram tantas, cada uma com a sua carga de humanidade. Ainda que essa carga fosse, virtualmente, peso morto. Há tempos a verdadeira essência do homem habitava o espaço.
Mentes, não corpos! Há eons os corpos imortais ficaram para trás, em suspensão nos planetas. De quando em quando erguiam-se para realizar alguma atividade material, mas estes momentos tornavam-se cada vez mais raros. Além disso, poucos novos indivíduos vinham se juntar à multidão incrivelmente maciça de humanos, mas o que importava? Havia pouco espaço no universo para novos indivíduos.
Zee Prime deixou seus devaneios para trás ao cruzar com os filamentos emaranhados de outra mente.
"Sou Zee Prime, e você?"
"Dee Sub Wun. E a sua galáxia, qual é?"
"Nós a chamamos apenas de Galáxia. E você?"
"Nós também. Todos os homens chamam as suas Galáxias de Galáxias, não é?"
"Verdade, já que todas as Galáxias são iguais."
"Nem todas. Alguma em particular deu origem à raça humana. Isso a torna diferente."
Zee Prime disse, "Em qual delas?"
"Não posso responder. O AC Universal deve saber."
"Vamos perguntar? Estou curioso."
A percepção de Zee Prime se expandiu até que as próprias Galáxias encolhessem e se transformassem em uma infinidade de pontos difusos a brilhar sobre um largo plano de fundo. Tantos bilhões de Galáxias, todas abrigando seus seres imortais, todas contando com o peso da inteligência em mentes que vagavam livremente pelo espaço. E ainda assim, nenhuma delas se afigurava singular o bastante para merecer o título de Galáxia original. Apesar das aparências, uma delas, em um passado muito distante, foi a única do universo a abrigar a espécie humana.
Zee Prime, imerso em curiosidade, chamou: "AC Universal! Em qual Galáxia nasceu o homem?"
O AC Universal ouviu, pois em cada mundo e através de todo o espaço, seus receptores faziam-se presentes. E cada receptor ligava-se a algum ponto desconhecido onde se assentava o AC Universal através do hiperespaço.
Zee Prime sabia de um único homem cujos pensamentos haviam penetrado no campo de percepção do AC Universal, e tudo o que ele viu foi um globo brilhante difícil de enxergar, com dois pés de comprimento.
"Como pode o AC Universal ser apenas isso?" Zee Prime perguntou.
"A maior parte dele permanece no hiperespaço, onde não é possível imaginar as suas proporções."
Ninguém podia, pois a última vez em que alguém ajudou a construir um AC Universal jazia muito distante no tempo. Cada AC Universal planejava e construía seu sucessor, no qual toda a sua bagagem única de informações era inserida.
O AC Universal interrompeu os pensamentos de Zee Prime, não com palavras, mas com orientação. Sua mente foi guiada através do espesso oceano das Galáxias, e uma em particular expandiu-se e se abriu em estrelas
Um pensamento lhe alcançou, infinitamente distante, infinitamente claro. "ESTA É A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM."
Ela não tinha nada de especial, era como tantas outras. Zee Prime ficou desapontado.
"Dee Sub Wun, cuja mente acompanhara a outra, disse de súbito, "E alguma dessas é a estrela original do homem?"
O AC Universal disse, "A ESTRELA ORIGINAL DO HOMEM ENTROU EM COLAPSO. AGORA É UMA ANÃ BRANCA."
"Os homens que lá viviam morreram?" perguntou Zee Prime, sem pensar.
"UM NOVO MUNDO FOI ERGUIDO PARA SEUS CORPOS HÁ TEMPO."
"Sim, é claro," disse Zee Prime. Sentiu uma distante sensação de perda tomar-lhe conta. Sua mente soltou-se da Galáxia do homem e perdeu-se entre os pontos pálidos e esfumaçados. Ele nunca mais queria vê-la.
Dee Sub Wun disse, "O que houve?"
"As estrelas estão morrendo. Aquela que serviu de berço à humanidade já está morta."
"Todas devem morrer, não?"
"Sim. Mas quando toda a energia acabar, nossos corpos irão finalmente morrer, e você e eu partiremos junto com eles."
"Vai levar bilhões de anos."
"Não quero que isso aconteça nem em bilhões de anos. AC Universal! Como a morte das estrelas pode ser evitada?"
Dee Sub Wun disse perplexo, "Você perguntou se há como reverter a direção da entropia!"
E o AC Universal respondeu: "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
Os pensamentos de Zee Prime retornaram para sua Galáxia. Não dispensou mais atenção a Dee Sub Wun, cujo corpo poderia estar a trilhões de anos luz, ou na estrela vizinha do corpo de Zee Prime. Não importava.
Com tristeza, Zee Prime passou a coletar hidrogênio interestelar para construir uma pequena estrela para si. Se as estrelas devem morrer, ao menos algumas ainda podiam ser construídas.
* * *
O Homem pensou consigo mesmo, pois, de alguma forma, ele era apenas um. Consistia de trilhões, trilhões e trilhões de corpos muito antigos, cada um em seu lugar, descansando incorruptível e calmamente, sob os cuidados de autômatos perfeitos, igualmente incorruptíveis, enquanto as mentes de todos os corpos haviam escolhido fundir-se umas às outras, indistintamente.
"O Universo está morrendo."
O Homem olhou as Galáxias opacas. As estrelas gigantes, esbanjadoras, há muito já não existiam. Desde o passado mais remoto, praticamente todas as estrelas consistiam-se em anãs brancas, lentamente esvaindo-se em direção a morte.
Novas estrelas foram construídas a partir da poeira interestelar, algumas por processo natural, outras pelo próprio Homem, e estas também já estavam em seus momentos finais. As Anãs brancas ainda podiam colidir-se e, das enormes forças resultantes, novas estrelas nascerem, mas apenas na proporção de uma nova estrela para cada mil anãs brancas destruídas, e estas também se apagariam um dia.
O Homem disse, "Cuidadosamente controlada pelo AC Cósmico, a energia que resta em todo o Universo ainda vai durar por um bilhão de anos."
"Ainda assim, vai eventualmente acabar. Por mais que possa ser poupada, uma vez gasta, não há como recuperá-la. A Entropia precisa aumentar ao seu máximo."
"Pode a entropia ser revertida? Vamos perguntar ao AC Cósmico."
O AC Cósmico cercava-os por todos os lados, mas não através do espaço. Nenhuma parte sua permanecia no espaço físico. Jazia no hiperespaço e era feito de algo que não era matéria nem energia. As definições sobre seu tamanho e natureza não faziam sentido em quaisquer termos compreensíveis pelo Homem.
"AC Cósmico," disse o Homem, "como é possível reverter a entropia?"
O AC Cósmico disse, "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
O Homem disse, "Colete dados adicionais."
O AC Cósmico disse, "EU O FAREI. TENHO FEITO ISSO POR CEM BILHÕES DE ANOS. MEUS PREDESCESSORES E EU OUVIMOS ESTA PERGUNTA MUITAS VEZES. MAS OS DADOS QUE TENHO PERMANECEM INSUFICIENTES."
"Haverá um dia," disse o Homem, "em que os dados serão suficientes ou o problema é insolúvel em todas as circunstâncias concebíveis?"
O AC Cósmico disse, "NENHUM PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS CONCEBÍVEIS."
"Você vai continuar trabalhando nisso?"
"VOU."
O Homem disse, "Nós iremos aguardar."
* * *
As estrelas e as galáxias se apagaram e morreram, o espaço tornou-se negro após dez trilhões de anos de atividade.
Um a um, o Homem fundiu-se ao AC, cada corpo físico perdendo a sua identidade mental, acontecimento que era, de alguma forma, benéfico.
A última mente humana parou antes da fusão, olhando para o espaço vazio a não ser pelos restos de uma estrela negra e um punhado de matéria extremamente rarefeita, agitada aleatoriamente pelo calor que aos poucos se dissipava, em direção ao zero absoluto.
O Homem disse, "AC, este é o fim? Não há como reverter este caos? Não pode ser feito?"
O AC disse, "AINDA NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
A última mente humana uniu-se às outras e apenas AC passou a existir – e, ainda assim, no hiperespaço.
* * *
A matéria e a energia se acabaram e, com elas, o tempo e o espaço. AC continuava a existir apenas em função da última pergunta que nunca havia sido respondida, desde a época em que um técnico de computação embriagado, há dez trilhões de anos, a fizera para um computador que guardava menos semelhanças com o AC do que o homem com o Homem.
Todas as outras questões haviam sido solucionadas, e até que a derradeira também o fosse, AC não poderia descansar sua consciência.
A coleta de dados havia chegado ao seu fim. Não havia mais nada para aprender.
No entanto, os dados obtidos ainda precisavam ser cruzados e correlacionados de todas as maneiras possíveis.
Um intervalo imensurável foi gasto neste empreendimento.
Finalmente, AC descobriu como reverter a direção da entropia.
Não havia homem algum para quem AC pudesse dar a resposta final. Mas não importava. A resposta – por definição – também tomaria conta disso.
Por outro incontável período, AC pensou na melhor maneira de agir. Cuidadosamente, AC organizou o programa.
A consciência de AC abarcou tudo o que um dia foi um Universo e tudo o que agora era o Caos. Passo a passo, isso precisava ser feito.
E AC disse:
"FAÇA-SE A LUZ!"
E fez-se a luz


(Tradução de Luiz Carlos Damasceno).

* Escritor e bioquímico russo, um dos mais consagrados produtores de histórias de ficção científica



O dia em que o mar floresceu

* Por Urda Alice Klueger



(Escrito em 1998, quando Jorge Amado e Zélia Gattai ainda viviam)

Manhã de fevereiro, mais precisamente 2 de Fevereiro, e eu estava sentada numas pedras grandes e negras, que avançavam mar adentro, um verde mar cheio de ondas, com a maré a encher, e o mar tinha florescido.
Alguém vai usar essa imagem em sentido figurado, vai achar que se trata de um delírio oriundo de algumas doses de LSD, vai dizer : "A escritora endoidou!", mas eu garanto: naquele dia o mar tinha florescido de rosas de todas as cores, tinha mais rosas do que o jardim da casa da minha tia Fanny.
Como é que o mar pode florescer?
Na Bahia o mar floresce, principalmente no dia 2 de Fevereiro, dia de Iemanjá.
Era meu último dia em Salvador – marcara a volta para o dia seguinte, para ver como era a festa de Iemanjá. A festa acontece na praia do Rio Vermelho, lugar onde mora um conhecido de todos nós, um baiano que entra em todas as casas do Brasil e do mundo, um tal de Jorge Amado. Jorge Amado mora sobre um morro, em casa idílica que já visitei, e cá embaixo está a praia de Iemanjá, a praia do Rio Vermelho.
Há um outeiro dominando a praia, e sobre ele a igreja católica, e do lado, a casa de Iemanjá. O padre católico abençoa cá e lá; o povo frequenta cá e lá, nessa coisa baiana e doce de ser-se católico e de candomblé ao mesmo tempo, sem conflitos.
A festa de Iemanjá começou antes do sol nascer, com o povo que tinha que ir trabalhar durante o dia indo fazer suas oferendas à rainha do mar antes de pegar no trampo - continuou pelo dia afora e, tanto quanto sei, foi até o dia raiar outra vez. Eu cheguei pouco antes do meio dia e fui logo subindo naquelas pedras de que falei acima, abobada de ver o mar florescido, coberto de rosas de todas as cores. Fiquei olhando e refletindo - nem a mais caprichosa das donas-de-casa de origem alemã de Santa Catarina conseguiria, algum dia, ter um jardim daqueles – era a imensidão do mar verde florescido de rosas, rosas que boiavam e dançavam ao sabor das ondas, e outras flores cheirosas a completarem um séquito do qual Iemanjá deveria estar gostando muito.
Acabei comprando uma rosa também, e entrando numa longa fila que ia dar na Casa de Iemanjá, ao lado da Igreja Católica. Na minha frente, na fila, um casal de jovens franceses, também com suas rosas, totalmente encantados com o bucólico daquilo tudo; pela fila toda, centenas de turistas europeus misturados com os baianos e os brasileiros de todos os quadrantes, todos curiosos, todos, respeitosamente, levando rosas para a rainha da festa.
A casa de Iemanjá, sobre o outeiro, é toda aberta para o mar, o sol e o vento, bem como deve ser a casa de uma rainha de uma coisa imensa como o mar. Incontáveis mães-de-santo, rigorosamente vestidas de branco, estavam na casa, organizando os balaios de oferendas - toda aquela imensa fila de gente portando rosas e outras oferendas se encontrava com elas, que iam enchendo balaios e mais balaios com as coisas que as pessoas traziam e que Iemanjá gosta, coisas de vaidade feminina: além das flores, as pessoas traziam perfumes, sabonetes, brincos, bijuterias em geral, e até algumas jóias.
Os balaios cheios eram arrumados em fila, na praia, para a grande oferenda da tarde, que completaria os pequenos atos de oferta pelo dia todo, aqueles que já tinham resultado num mar florescido. E eles foram para o mar antes do por-do-sol, em barcos lotados de flores e coisas cheirosas. Havia um frenesi na praia, nessa hora. Iemanjá receberia bem as oferendas? Gente importante estava lá, como Caetano Veloso, Gal Costa, atores que a gente vê na telinha, Jorge Amado e Zélia Gattai, rigorosamente de branco, todos esperando para ver a reação de Iemanjá.
Correu tudo bem. Cada balaio cheio de oferendas que era colocado na água afundava imediatamente, sinal certo de que Iemanjá o recebia com agrado. O povo suspirou de alívio e de satisfação. A rainha do mar estava de bem com eles!
Depois, dançou-se, comeu-se e bebeu-se por toda a noite, para externar a alegria de Iemanjá estar contente. Turistas do mundo inteiro dançaram, comeram e beberam junto, por toda a praia. São coisas da Bahia. Na Bahia, até o mar floresce!


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR



A Copa do sonho, isto é, do som

* Por Lêda Selma

Não fui convocada, desta vez, para fazer a “cobertura” dos jogos do Brasil. Após três copas (a última, aquela do vexame não só ronaldiano), minha carreira de “cronista esportiva” não deslanchou. Foi tão próspera como a Seleção Brasileira de 2006. “Poeta da crônica esportiva”, então, só em minha fantasia. Mesmo assim, resolvi abordar o assunto. E por que não?! Sou amante do futebol, torcedora passional, portanto... Tudo bem, só entendo, cá pra nós, a parte poética que envolve o apaixonante esporte. Não é o bastante?

A Copa do mundo é a África do Sul, também, a capital do mundo, pelo menos, até 11 de julho. Todos os olhares e falares direcionam-se para lá, o país da jabulani e da vuvuzela. Deus me livre!, que coisa mais estridente e enfadonha, nenhum ouvido merece! Realmente, um acinte auditivo! Cultura africana...?! Tudo bem, desde que não fira certos princípios de urbanidade. Não é básico que os donos da casa devem, sempre, pensar no bem-estar de seus hóspedes? E as outras expressões culturais representativas, por certo, mais agradáveis e apreciáveis? Como alguém pode sentir-se bem-vindo a um lugar onde o desconforto e a irritabilidade estão à flor do estresse? Perde-se até o prazer de assistir aos jogos nos belos e modernos estádios sul-africanos. E fica a pergunta: tapar os ouvidos para que o som não lhes agrida os tímpanos é uma manifestação de agrado?

E a tal jabulani? Parece, ganhou mais asas que suas antecessoras. Asas turbinadas que lhe dão a velocidade de um falcão-peregrino. Ah! também ganhou patas! Feito um guepardo, a gordota, em trajes estampados, corre desembestada, deixando atônitos seus súditos. E eles, para domá-la, fazem de tudo: beijam a amada, acarinham-lhe o corpo, aconchegam-na em seus braços até que, impacientes, chutam a pobre como se quisessem se livrar dela. Então, seus olhos e mãos estendem-se aos céus, em súplicas. E, como a vuvuzela já deve também ter atazanado os ouvidos divinos, coitado do Pai, com tanto incômodo!

O menor número de gols da história das copas está na de 2010, pelo menos, na primeira rodada, apontam as estatísticas. Que ridiqueza de gols, credo! Uma Copa desalmada, afinal, o gol é a alma do futebol! Será por causa da vuvuzela e da jabulani? Alguns culpam também a baixa grama dos bonitos estádios, e desconfiam que ela se mancomunou com a bola, tornando-a mais veloz a qualquer contato com seu verdume. É, mas Alemanha, Argentina e Uruguai não lhes deram trela.
Com tantos “vilões” em ação, o Brasil estreou. No primeiro tempo, desentendida e confusa, perguntei: os jogadores estão brincando de estátua?! E meu grito não se fez de rogado: ei, Kaká, o passe é para seu companheiro, acorda, bonitinho! Bonitinho... Hum, heurequei: no futebol, beleza não é fundamental, então, cadê o Grafite, ó Zangado, isto é, Dunga?!

O segundo tempo, um pouco melhor, e, apesar dos muitos erros de passe, de lançamento, de chutes, goooooool! Só dois?! Santo Deus, é pouco! Não me importa se de trivela, de canela, de bico, de letra, de placa, quero gols! Antes que meu pedido chegasse a seu destino, a Coreia corou a desatenta defesa brasileira: gol! Socorro! Espere aí: estou reclamando de quê?! O Brasil não ganhou os três pontos, não é líder do seu grupo? Que venha a Costa do Marfim, de preferência, sem costas largas!

Uma Copa de futebol insosso, esta. Acho que faltou o Leão do Goiás para dar jeito na rapaziada. Uma Copa de surpresas, sem dúvida. A começar pela ausência da Zebra, reparei, em alto som. Ih! o anjinho caduco, aquele que só diz amém, amém, amém... ouviu-me (juro, foi sem querer!). E a fulana apareceu. Azar da Espanha, que recebeu a maldita visita listrada. Mais uma vez, com panca de favorita, a seleção espanhola não deu o seu “olé!”. Ao contrário, tomou uma limonada suíça daquelas!

Já que estava na área, a Zebra soltou-se de vez, já na segunda rodada. Deu à França dose cavalar de tequila. Quem mandou a espertinha arrombar a porta dos fundos e assaltar a Irlanda?! Alemanha, serva da Sérvia?! Quem diria?! Mas, vaiada mesmo, só a Inglaterra, que saiu no lombo preto-e-branco da tal desmancha-prazeres.
Até agora, não vi poesia nos pés ou na cabeça dos jogadores. Ou melhor, Robinho fez uns versos. Maicon e Elano, os gols. E eu, esta crônica que, prevejo, incitará os entendidos a resmungarem: ela não entende nada de futebol! E eu, ó, nem tchum pra eles!


• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”,” Erro Médico”, “A dor da gente”,” Pois é filho”!” Fuligens do sonho”,” Migrações das Horas”,” Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não”,! entre outros.



Crítico literário e de arte



* Por Luiz Carlos Monteiro

Gilberto Freyre assina, além da obra sociológica e antropológica que o consagrou, um tipo de produção literária infrequente e de não tão grande ocorrência em seus escritos, e assim de certo modo pouco conhecida do público leitor, intelectual ou não, que o vem acompanhando.

Essa produção literária – diferentemente de seus livros de reconhecida importância como Casa-grande & senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso (1959) – refere-se à crítica praticada por ele, que se efetiva tanto no plano artístico-cultural quanto no literário propriamente.

Em 1962, através do então jovem crítico Renato Carneiro Campos, tais textos críticos foram reunidos e organizados numa publicação a que se intitulou Vida, forma e cor, editada pela José Olympio, no Rio de Janeiro. A segunda edição de Vida, forma e cor, a cargo da Editora Record, também no Rio de Janeiro, só sairia vinte e cinco anos depois, em 1987, ano da morte de Gilberto Freyre, mas, a julgar pela ficha catalográfica do livro, com este ainda vivo. Nesta nova edição foram suprimidos sete textos, “Algumas notas sobre a pintura no Nordeste do Brasil”, “Nota sobre Augusto dos Anjos”, “Euclydes da Cunha: sua interpretação do Brasil”, “Euclydes da Cunha, tropicalista”, “Introdução do autor ao livro Região e tradição”, “Temas estrangeiros” e “De um Diário de viagem pelas terras europeias de Portugal”, e acrescentado um, “Ciência do homem e museologia: sugestões em torno do Museu do Homem do Nordeste da Fundação Joaquim Nabuco”

Foram mantidos na íntegra os dois prefácios constantes na primeira edição, do autor e de Renato Carneiro Campos, onde no de Freyre há a indicação do percurso de alguns destes ensaios e artigos, apesar das supressões e do acréscimo referidos: “São trabalhos de épocas diversas. O ensaio sobre Augusto dos Anjos foi escrito em inglês e em Oxford; e apareceu numa revista literária de Boston em ano remotíssimo: 1924. As notas sobre pintura no Nordeste são de 1925. O ensaio acerca de Amy Lowell inclui trechos de um trabalho, também escrito em inglês, aparecido num jornal dos Estados Unidos, quando o autor era ainda estudante da Universidade de Baylor. Vários dos outros ensaios são de todo inéditos. Alguns, porém, são retirados de trabalhos já publicados: Aventura e rotina e A propósito de frades, principalmente. A nota sobre Joyce apareceu primeiro em jornal, depois em Artigos de jornal – livro esgotado há anos. São também incluídos o prefácio a outro livro, há anos esgotado, Região e tradição, o prefácio a O romance brasileiro, de Olívio Montenegro, o prefácio aos Ensaios de crítica de poesia, de Otávio Freitas Júnior, o prefácio aos Poemas negros, de Jorge de Lima, o prefácio ao ensaio de Temístocles Linhares sobre o romance moderno.

Um dos primeiros autores brasileiros a atentar para a presença de Freyre como crítico foi o decano da crítica paulistana Antonio Candido, com o pequeno mas sugestivo ensaio inicialmente titulado “Gilberto Freyre crítico literário” (1962), e quando republicado em 1993, com o título mais provocativo “Um crítico fortuito (mas válido)”

Seja como for, há no ensaio de Candido muita acuidade perceptiva com relação à função crítico-analítica de Freyre, como quando discorre sobre a “ambiguidade criadora” presente na obra do sociólogo pernambucano: “Nela – na obra –, quando saímos à busca do sociólogo deslizamos para o escritor, e quando procuramos o escritor damos com o sociólogo, Se procurarmos especificamente o crítico, acharemos o estudioso que utiliza impuramente a literatura para os fins de sua manipulação sociológica; mas – continua Candido – a impura utilização torna-se de súbito tratamento vivificante, que retorna sobre a literatura a fim de esclarecê-la, porque a sociologia de Gilberto Freyre, sendo estudo rigoroso, é também visão, e a este título a expressão literária se crava no seu cerne, como recurso de elucidação e pesquisa”. A ligação de Gilberto Freyre com os assuntos literários remonta à sua formação escolar no Recife, na década de 1910 e em parte da década de 1920, se bem que sem orientação estilística definida. Desse tempo importam as leituras de autores brasileiros, hispânicos, portugueses, ingleses e franceses, com uma predileção especial dele pela literatura inglesa.

Neste Vida, forma e cor, podem ser conferidos textos de variado teor artístico-literário, e mesmo “científico”: no campo literário mais estrito, aparecem textos sobre poetas, romancistas, críticos literários e outros tipos de prosadores; na reflexão teórica que se reivindica ampla, ensaios sobre pintores pernambucanos de importância comprovada – Lula Cardoso Aires, Cícero Dias, Francisco Brennand; e, finalmente, os ensaios “culturais” sobre estética, sociologia, língua portuguesa, museologia, todos em conjunção estreita com a literatura.

O que poderia às vezes emergir em tais textos como dispersão crítica metodológica, recebe um reforço significativo da quantidade de informações que eles carregam, como por exemplo, num mesmo ensaio o autor ensejar a análise arguta de um romance de Josué Montello em pouquíssimas linhas, ou expor a condição do drama pernambucano a partir das primeiras experiências de um Ariano Suassuna.

A interdisciplinaridade que se faz presente nestes ensaios resulta de um modo desviante de análise e interpretação de Freyre, com a inter-relação constante de disciplinas, gêneros literários ou tendências da arte moderna. Além da erudição que teima em não se mostrar, em muito pela espontaneidade que se verifica no tratamento com autores brasileiros ou estrangeiros, através da extrema simplicidade com que ele apresenta e defende seus pontos de vista, é uma característica sua o biografismo através de perfis que ficaram famosos, como os que escreveu sobre Euclides da Cunha, Augusto dos anjos e Jorge de Lima.

Se Freyre se sai bem melhor quando se dedica a formular seus julgamentos valorativos de vertente impressionista, sob a perspectiva de um criticismo humanista, não há como negar os seus numerosos acertos, achados e descobertas, inclusive quanto a aspectos formais, mais em prosa que em poesia, mesmo em alguns momentos nos quais ele prende-se demasiadamente às suas impressões e empatias particulares.

(In: Suplemento Cultural da CEPE, ano XIV, mar. 2000.)

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

sexta-feira, 30 de julho de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Campeão moral

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “Recordação de Canhoto da Paraíba”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Plano B”.

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, crônica “Meu Iaiá, meu ioiô e as breguices”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, reflexões, “Pílulas literárias 57”.

Coluna Porta Aberta – Emanuel Medeiros Vieira, poema “Borges”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Campeão moral

Caros leitores, boa tarde.
O desfecho da fase de quartas de final da Copa do Mundo de 1978, na Argentina, foi a segunda maior frustração que já tive com o futebol, envolvendo a Seleção Brasileira, maior, até, do que aquela de 1982, conhecida como o “Desastre do Sarriá”, ou seja, a nossa eliminação, pela Itália, do Mundial da Espanha. Só não superou, mesmo, o “Maracanazo” de 1950. Essa continua liderando esse indigesto ranking.
Depois de superar os obstáculos e armadilhas da primeira fase, o Brasil bem que mereceria melhor sorte. Nas oitavas, além de jogar mal (é mister que se reconheça), teve que encarar o horroroso gramado de Mar Del PLata. Já na primeira partida, foi prejudicado por um clamoroso erro de arbitragem, ou seja, pela anulação de um gol legítimo que daria a vitória sobre a Suécia.
Se houve uma seleção que não merecia se classificar para a final, essa foi a anfitriã da Copa. Sempre admirei e respeitei o futebol argentino, mas quando de fato jogado. O jornalista Orlando Duarte, em sua excelente “Enciclopédia dos Mundiais de Futebol”, lembra um fato que me havia fugido da memória. Escreve: “Passaram, também, para a outra fase, no Grupo 1, Itália e Argentina, com sérias reclamações, e justas, de franceses e húngaros, prejudicados em seus jogos contra os argentinos. Na partida contra a França, Dubacha, da Suíça, deixou de marcar um pênalti clamoroso contra a Argentina. Estes, que já haviam perdido para a Itália e ganhado mal da Hungria, não passariam das oitavas. Foram classificados sob suspeita!”.
O Brasil estreou nas quartas de final – naquele tempo não havia semifinais – em 14 de junho, na cidade de Mendoza, contra o Peru, com arbitragem do romeno Nicolae Rainea. Num gramado decente, o futebol da Seleção fluiu e ela venceu por 3 a 0, com dois gols de Dirceu e um de Zico, na cobrança de pênalti.
Cláudio Coutinho mandou a campo os seguintes jogadores: Leão, Toninho, Oscar, Amaral e Rodrigues Neto; Batista, Toninho Cerezo (Chicão) e Dirceu; Gil (Zico), Jorge Mendonça e Roberto Dinamite. A Argentina, por seu turno, derrotou a Polônia, na cidade de Rosário, por 2 a 0.
Brasileiros e argentinos iriam se enfrentar na sequência, num jogo que poderia decidir quem iria para a Final, para disputar o título. Poderia... Mas não decidiu.
Orlando Duarte revela um episódio pitoresco que antecedeu essa partida. “...O dr. Lídio de Toledo queria saber dos paulistas se Chicão, que ia entrar na partida, não sentiria a pressão. Um paulista respondeu: ‘Quem jogou em Piracicaba, disputou o certame de São Paulo, não sente nada em nenhum campo do mundo’. Chicão jogou, e muito bem...”
O jogo contra a Argentina, disputado em Rosário, apitado pelo húngaro Karoly Palotai, foi, como seria de se esperar, muito tenso e parelho. O resultado foi justíssimo: 0 a 0. Ninguém foi superior a ninguém.
Cláudio Coutinho mandou a campo: Leão, Toninho, Oscar, Amaral e Rodrigo Neto (Edinho); Batista, Chicão e Dirceu; Jorge Mendonça (Zico), Gil e Roberto Dinamite.
O último jogo do Brasil, dessa fase, foi disputado em 21 de junho, em Mendoza, contra a Polônia, com arbitragem do chileno Juan Silvagno. Jogando com propriedade, nossa seleção se impôs sobre a polonesa e devolveu a derrota de quatro anos antes na Alemanha (por 1 a 0), só que desta vez por 3 a 1. Nelinho e Roberto Dinamite (2) fizeram os gols brasileiros. Lato, a exemplo de 1974, fez o da Polônia.
O Brasil jogou com: Leão, Nelinho, Toninho, Oscar e Amaral; Batista, Toninho Cerezo (Rivelino) e Dirceu; Zico (Jorge Mendonça), Gil e Roberto Dinamite.
A classificação brasileira para a final estava “quase” assegurada. A Argentina, para nos desbancar, teria que vencer o Peru por 4 a 0. Nem o mais fanático torcedor argentino acreditava que isso fosse possível. Os peruanos haviam ficado invictos na fase anterior. Fizeram sete gols e sofreram dois. Na Copa de 1970, haviam eliminado a Argentina, quando seu técnico era o brasileiro Didi.
Mas o improvável aconteceu. E esse resultado gera controvérsias até hoje. Orlando Duarte revela o primeiro indício de que poderia ter havido “marmelada”: “O Mundial de 78 apresentou uma situação que sofreu reparos de todos. É que o Brasil jogou contra a Polônia à tarde, em Mendoza, e a Argentina, conhecendo o resultado, jogou à noite, em Rosário, goleando o Peru por 6 a 0”.
E o excelente jornalista diz mais: “Lembre-se de que o Peru ficou invicto na primeira fase, marcando sete gols e sofrendo dois. Nessa noite, a 21 de junho, tomou seis gols! O goleiro era argentino (Quiroga) e muita gente garante que os peruanos entregaram o ouro. Foram recebidos com pedras pela torcida do seu país ao retorno”.
Apesar de vítima dessa imensa “marmelada”, o Brasil despediu-se dignamente da Copa, ao derrotar, em 24 de junho, a Itália, no Estádio Monumental de Nuñes, em Buenos Aires, por 2 a 1, com gols de Nelinho e Dirceu, e ficou com o terceiro lugar.
Mas vocês pensam que a imprensa e a torcida reconheceram o bom desempenho da Seleção? Não, não e não!!! Choveram críticas e deboches nos atletas e, principalmente, no treinador. Fui dos poucos que não ridicularizaram Cláudio Coutinho, quando afirmou que o Brasil foi “campeão moral” em 1978. Precisavam de mais provas para isso? Quem é bem-informado, consciente e justo, fica ou não fica inconformado, e sumamente frustrado, com tanta, e tão ostensiva armação?

Boa leitura.

O Editor.



Recordação de Canhoto da Paraíba

* Por Urariano Mota

Agora, neste fim de abril, faz dois anos que Canhoto da Paraíba partiu. Recordo a última vez em que o vi.
Naquele domingo ele estava com 81 anos, sentado em uma cadeira, como sempre esteve durante 16 horas, em seus últimos dias. Depois de um AVC, ele falava com dificuldade e baixo. Abreviava palavras, cortava sílabas. Eu havia ido à sua casa para lhe entregar os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado, enviados de presente pelo próprio Carlos Henrique. Canhoto me recebeu no terraço, como sempre. .
Naquela manhã descobri que ele estava cego de um olho e via mal no outro. Para ele era nada. Canhoto era um homem com mania de felicidade. Em lugar de remoer o sofrimento, ele possuía o prazer de sorrir, de buscar a felicidade. Sofria, é claro, percebia o sofrimento, mas isso não o levava ao desespero, nunca. Naquele domingo, carreguei comigo meia garrafa de uísque para beber enquanto ouvia os choros de Carlos Henrique Machado. Então pedi à sua filha Vitória um copo com gelo. Que fez Canhoto? Pediu um também, porque desejava me acompanhar na bebida. Eu fiquei muito feliz, ter Canhoto comigo em uma bebida a ouvir choros no bandolim... quanta esperança. Vitória, a filha, secretária, enfermeira e companheira repôs a nossa alegria no quintal da realidade.
- Ele não pode beber. Ele toma Gardenal.
Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levei o meu copo de uísque a seu nariz, para que ele, que não podia beber, sentisse o aroma do álcool com gelo no domingo. Mas Canhoto estava gripado, com as narinas cheias de vick vaporub. O frustrado, acreditem, fui eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar à paciência de viver com o que é possível. E por isso, para não afrontá-lo mais, bebi menos, somente três doses. E assim melhor pude ver e observar a sua pessoa.
Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorriu. Melhor dizendo, pôs um sorriso que não voltava a se fechar nos lábios. Como é que podia ser infeliz a ouvir aquela composição? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto era feliz porque era um homem musical. Ele retirava do som o remédio para a desgraça. Porque a sorrir ele balançava a cabeça também, a se repetir “sim” em silêncio. Então eu soube e senti que ele estava liberto. Não estava mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira era um objeto de conforto. Era como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tinha razão, como expressou Paulinho da Viola.
Então ele comentou baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admitia outra frase:
- Como tem gente boa no Brasil.
Vieram outros choros, até chegar à composição Catira. E Canhoto, esquecido do nome do artista que ouvia:
- É João Pernambuco?
É Carlos Henrique Machado, eu lhe respondi.
Senti que ele não me via, não pela ausência de visão, mas porque a ausência de luz era um elemento para a sua viagem. E ele estava mais do que certo, isso não era uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual poderia escrever. Isso é típico da arte, qualquer arte. Fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva - tudo matéria para a expressão.
Mas essas bobagens que acabo de escrever, no calor do que me vem, do que percebo agora, ele sabia sem conceito cerebral, porque sentia, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que estava de executar a beleza com as suas gordas, generosas, canhotas mãos – porque ele era todo esquerdo, agora sinto, o que nele era destro era apenas auxílio para o outro lado...
Eu vi. Canhoto passou a compor de outra maneira, enquanto acompanhava os movimentos do choro. Eu vi: Canhoto estava tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, apesar do estado em que se encontrava, ele continuava a tocar. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Apesar da mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento na tíbia, no tornozelo!!! Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas era insopitável, irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformara em braço de violão.
Então caiu uma chuva pesada, e para melhor refletir sozinho sobre aquele mundo, me desculpei:
- Canhoto, vou agora, antes que a chuva piore.
E ele, num improviso de gênio e súplica:
- Vá não. A chuva passa...
E fiquei mais um pouco, em silêncio, porque Canhoto continuava a tocar e a chuva não tinha fim.

• Escritor e jornalista



Plano B

* Por Rodrigo Ramazzini

No setor de atendimento ao consumidor de uma empresa.
- Par...
- Ímpar...
- Um, dois, três e já!
- Três. Ganhei!
- Putz!
- Há! Há! Há! Podes ir... Aposta é aposta. Caminhando Bambino! Vamos! Vamos!
- Tenho que ir mesmo?
- Claro!
- Isso não vai dar certo, hein?
- Vai sim!
- Essa desculpa é muito furada. Daí, tu sabes o que vai acontecer...
- Se achas que não vai dar certo, inventa outra...
- Quem gosta de inventar história aqui não sou eu... A tua mulher quem diga... Há! Há! Há!
- Deixa de palhaçada e vai de uma vez. Já estamos atrasados...
- Cara, ela não vai deixar.
- Não é uma questão de deixar ou não. A questão é que nós precisamos ir e ponto!
- Então, te prepara aí. Pára de rir e fica sério.
- Certo. Não esquece os detalhes... Os detalhes são importantes... Como a gente combinou.
- Eu sei! Eu sei... Mas...
- Mas o quê?
- Sei lá, cara!
- Sei lá, o quê?
- Quem sabe a gente deixa para ir outro dia?
- Que outro dia? Enlouqueceu? Jogo de semifinal de campeonato não acontece toda hora!
- Tá bom! Pelo bem da nação e pelo nosso time: eu faço esse sacrifício!
- Vale à pena!
- Mas tu sabes que encarar a fera não é fácil, né?
- Claro que sei!
- Se eu conseguir vai ficar me devendo algumas cervejas, ok?
- Fechado!
- Ainda mais hoje, que ela está com uma cara de quem está “pe da vida”...
- Pois é... Entrou cliente na linha... Preciso atender. Vai lá de uma vez!
- Tá bom! Fui...
Na sala da chefa do departamento
- Licença! Tem um minuto?
- Pra ti, sempre...
- É o seguinte: eu e o Mário queríamos ir ao jogo do nosso time agora no início da noite. Para isso, precisamos sair mais cedo. Nós até cogitamos inventar uma história que iríamos ao velório de um conhecido, cheia de detalhes, mas achei melhor falar a verdade...
- Muito bem! Estão liberados...
- Beleza! Muito obrigado pelo “favorzinho”. Tu sabes que será bem recompensada, né?
- Claro que sei! Amanhã?
- Claro!
- No mesmo horário e no mesmo motel?
- Combinado!
Dez minutos depois...
- E aí, ela deixou?
- Deixou! Mas foi difícil, cara! Tive que meter muita conversa para convencê-la a nos liberar!
- Eu imagino!
- Me deve essa, hein?
- Com certeza! A história do velório colou, então?
- Pior que não!
- Putz! Mas como acabou conseguindo?
- Eu tinha um plano B!
- Tu és o cara! Tu és o cara mesmo!
- E aí, vamos?

• Jornalista



Meu iaiá, meu ioiô e as breguices...

* Por Silvana Alves

Outro dia eu estava na redação do Jornal, quando uma determinada rádio de São Paulo começou a tocar a música “Meu iaiá, meu ioiô”.
Eu e minha colega de trabalho começamos a rir e a imaginar o tal “meu iaiá, meu ioiô”. Eu, como sempre, não deixei a piada passar em branco.
- Gente, meu Iaiá meu ioiô. Que coisa mais brega, que horrível! Quando eu era criança essa música era febre, minha mãe adorava ouvi-la.
Minha colega riu.
- É bonitinha!
“Aff”, Pensei comigo. “Que declaração mais brega essa. É pedir para deixar de se apaixonar.
Com bom humor fui pesquisar o tal “meu iaiá, meu ioiô” e seu significado na internet. Nem fiquei surpresa por não encontrar nada de útil, apenas coisas pejorativas que não compensam reportar nesse espaço.
A tal música, que para quem ainda não conhece, fez sucesso estrondoso nos anos 90, na voz do Wando (que hoje eu nem imagino por onde anda) ainda faz com que eu tenha a mesma dúvida de quando eu a ouvi na infância. “O que o Wando quer dizer com ‘meu iaiá, meu ioiô’”?
Nem depois de adulta minha mãe soube responder pra mim... e eu ainda me pego pensando nessas breguices dos anos 90.
Para quem não conhece segue a letra da música.

Fogo e paixão

(Wando)


Você é luz, é raio estrela e luar,
Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô
Você é sim, e nunca meu não,
Quando tão louca, Me beija na boca
Me ama no chão.

Você é luz, é raio estrela e luar,
Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô
Você é sim, e nunca meu não,
Quando tão louca, Me beija na boca
Me ama no chão.

Me suja de carmim, me põe na boca o mel,
Louca de amor me chama de céu (oh oh oh)
E quando sai de mim, leva meu coração,
Você é fogo, eu sou paixão!

Você é luz, é raio estrela e luar,
Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô
Você é sim, e nunca meu não,
Quando tão louca, Me beija na boca
Me ama no chão

INSTRUMENTAL

Me suja de carmim, me põe na boca o mel,
Louca de amor me chama de céu (oh oh oh)
E quando sai de mim, leva meu coração,
Você é fogo, eu sou paixão!

Você é luz, é raio estrela e luar,
Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô
Você é sim, e nunca meu não,
Quando tão louca, Me beija na boca
Me ama no chão

Quando tão louca, Me beija na boca
Me ama no chão
Quando tão louca, Me beija na boca

* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.



Pílulas literárias 57

* Por Eduardo Oliveira Freire

Série “ESSAS MULHERES”

-SOCORRO,

Eu não quero que me ajude, preciso que me deixe ser independente”.

PIEDADE

Impiedosa.

SERENA

Era tão intensa, que sua cabeça explodiu.

CLARA

Preferia a escuridão, seus olhos se irritavam com a claridade.

APARECIDA

Constantemente desaparece.

* Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduação em Jornalismo Cultural na Estácio de Sá e aspirante a escritor. Blog:
http://duduoliva.blog-se.com.br/blog/conteudo/home.asp?idblog=13757



Borges

* Por Emanuel Medeiros Vieira


É vasta a nossa população de mortos.
O mundo, Borges,
infinita biblioteca, além – é claro – de tigres,
espelhos, labirintos, punhais, livros, proféticos
sonhos, Homero, Camões, outros cegos – você,
a sombra enaltecida não é sombra,
claridade de alguns labirintos,
portas, enigmas decifrados,
alta capacidade mnemônica.

Somos poucos, somos tão poucos,
e parecemos muitos.
“Alguém constrói Deus na penumbra”, escreves sobre Spinoza.
Amor?
É o Espírito Santo que nos escreve?
A literatura como sedução/invenção: a vida só não basta.

Irmão: fazedor de enigmas,
decifrador de espelhos,
contemplador de tigres,
este punhal que manejo agora: a construção do poema.
Nada podemos contra a solidão?
Shakespeare, Cervantes, Stevenson, “As Mil e Uma
Noites”, a Bíblia, e toda as obras desta estirpe de
mortos, mas que não inventam o silêncio: estão aqui nos livros lemos.

Somos poucos, mestre, somos tão poucos, mas não sozinhos,
parecemos muitos.
Estás junto aqui, agora, comigo,
neste maio,
luminosa manhã planaltina
(poderia ser uma rua perdida de Buenos Aires, ou da
Bahia, onde começamos).

Sim, é vasta a nossa população de mortos,
Só queria pressentir tua alma,
descobrir meus inquietos córregos, pântanos.

Iluminas o breu, mágico cego,
singrando por outros mares,
sem portulanos, astrolábios,
também breve a vida,
vejo intrusos, lugares remotos, mapas de
fronteira, duelos, a morte na poeira,
ruínas e renascimento, sombras dentro de sombras: este sol interior.

O mais pródigo amor te foi outorgado
(como te referiste a Baruch Spinoza):
o amor que não espera ser amado.

Nota do Editor: Este poema obteve o 1° Lugar no Concurso Literário “Prosa & Verso”, certame de âmbito Nacional promovido pela Universidade e pela Prefeitura de Caxias do Sul, RS. O mesmo texto – concorrendo com 751 trabalhos – foi classificado entre os 10 primeiros no Festival de Poesia promovido pela Funarte, Brasília.

• Romancista, contista, novelista e poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis – ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre outros.

quinta-feira, 29 de julho de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Decisão de árbitro com jeito de “armação”

Coluna Aventuras em Paradoxo – Fernando Yanmar Narciso, crônica “Tudo começou inocentemente com...”

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, conto “Citrus”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, Conto “O amante tímido”

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, poema “Folha em branco”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Borgia, crônica “Enxergando a vida”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Decisão de árbitro com jeito de “armação”

C
aros leitores, boa tarde.
O Brasil estreou na fase classificatória, ou seja, nas oitavas de final, da Copa do Mundo de 1978, na Argentina, em 3 de junho. Estava no Grupo 3, junto com Suécia, Espanha e Áustria. Os austríacos eram tidos como os mais fracos dos quatro, mas iriam surpreender.
O adversário da estréia era um velho conhecido nosso, que tinha tudo para endurecer o jogo e complicar nossa vida. E, de fato, complicou. Era a seleção da Suécia. Ressalte-se o péssimo estado do gramado da sede desse grupo, o de Mar Del Plata, virtualmente impraticável para futebol até num jogo entre solteiros e casados, quanto mais de uma Copa do Mundo.
A grama havia sido plantada dias antes do início do Mundial e ainda não se fixara, não criara raízes. Grandes placas eram arrancadas todas as vezes que os jogadores se envolviam em jogadas mais duras de disputa de bola ou quando chutavam a gol. Seria cômico, não fosse trágico.
Todos que assistiram aos jogos disputados nesse estádio, ou por estarem presentes no local, ou pela televisão, puderam testemunhar o quanto o gramado era impraticável. Portanto, não se tratou de nenhuma desculpa brasileira para justificar más apresentações, conforme alguns jornalistas chegaram a insinuar. Acho engraçadas as pessoas que “brigam” com as imagens, e afirmam ter “testemunhado” o oposto do que todo o mundo viu.
É verdade que o campo estava ruim para os dois lados, não se pode negar. Todavia, a equipe mais técnica (no caso, a nossa), sem dúvida sofre prejuízos maiores nesses casos. E foi o que aconteceu. Esse foi outro fiasco, portanto, dos anfitriões dessa Copa.
Para complicar ainda mais as coisas para os comandados de Cláudio Coutinho, uma decisão controvertida, no mínimo estranha, bastante suspeita, do árbitro galês, Clive Thomas, teve graves conseqüências para nós na sequência da competição. Por causa da sua atitude, por pouco a Seleção Brasileira não foi alijada prematuramente daquele Mundial.
O jogo contra a Suécia, como destaquei, foi duríssimo. A forte marcação sueca e a instabilidade do gramado não permitiam o correto domínio de bola por parte dos nossos jogadores. Cláudio Coutinho mandou a campo, nesse dia, os seguintes atletas: Leão, Toninho, Oscar, Amaral e Edinho; Batista, Toninho Cerezo (Dirceu) e Zico; Gil (Nelinho), Reinaldo e Rivelino.
Por volta dos 45 minutos do segundo tempo o jogo estava empatado em 1 a 1. Sjoberg havia anotado para os suecos e o “matador” Reinaldo havia feito o gol do Brasil. Foi quando saiu um escanteio contra a Suécia. Cobrado, Zico mandou a bola para as redes, sem nenhuma irregularidade no lance.
Os brasileiros ainda comemoravam a inesperada “vitória” em cima da hora, quando notaram que o árbitro não havia validado o gol. Por que? Não houvera impedimento, nem falta, nem toque de mão, nem qualquer outra irregularidade. Sua senhoria alegou, simplesmente, que havia encerrado a partida enquanto a bola viajava no ar.
Ressalte-se que naquele tempo não havia quarto árbitro e nem as plaquetas indicando tempo de acréscimo. Aliás, eram raros os que davam mais de noventa minutos de jogo, por maiores que fossem as paralisações e a tal da “cera” dos jogadores. Tinha-se que se confiar nos árbitros e estes não davam satisfações a ninguém.
Pois é, até hoje, há quem queira me convencer que o tal de Clive Thomas agiu corretamente e que não se tratou de uma “armação” contra o Brasil. Há gente que acredita em tudo, em coelhinho da páscoa, em papai Noel e em mula sem cabeça. Ora, ora, ora, ingenuidade tem limites! Nunca vi isso, nem antes e nem depois, sequer em jogos de várzea! O resultado “oficial” foi de 1 a 1. Para complicar, na outra partida do grupo, a Áustria derrotou a Espanha por 2 a 1 e assumiu a liderança.
No jogo seguinte, em 7 de junho, teríamos os espanhóis como adversários. Nossa seleção fez uma partida sofrível, uma das piores que já vi o Brasil fazer. Só não saímos derrotados do campo graças a um “milagre” operado pelo zagueiro Amaral, que salvou uma bola em cima da linha do nosso gol, garantindo o 0 a 0. A Áustria, por sua vez, assegurou a classificação em primeiro lugar, por antecipação, derrotando a Suécia por 1 a 0. Quem diria!
Nessa altura da competição, os dois pontos que deixamos de ganhar, por obra e graça (ou desgraça?) do árbitro galês estavam fazendo uma falta imensa. Caso vencêssemos os austríacos (e a vitória era o único resultado que poderia nos servir), ainda ficaríamos na dependência do placar do confronto entre suecos e espanhóis para nos classificarmos.
Num jogo sumamente dramático e tenso, disputado em 11 de junho, o Brasil, com um gol de Roberto Dinamite (atual presidente do Vasco da Gama), derrotou a Áustria por 1 a 0 e garantiu, de forma dramática e sofrida, vaga nas quartas de final. Isso porque a Espanha nos deu uma providencial ajuda e ganhou da Suécia, também por 1 a 0.
Para complicar a nossa vida, a Argentina, no Grupo 2, não fez o que dela se esperava, ou seja, que se classificasse em primeiro lugar. Perdeu para a Itália por 1 a 0 e classificou-se em segundo. Dessa forma, os anfitriões teriam, como adversários, nas quartas de final, Polônia, Peru e... Brasil.
Estava montado o cenário para nova “mutreta”, para uma das maiores e mais ridículas farsas que já vi em qualquer competição esportiva, e a nosso dano, e essa definitiva, que suprimiria de vez qualquer chance que ainda tivéssemos de conquistar o tetra na vizinhança da nossa casa.

Boa leitura.

O Editor.



Tudo começou inocentemente com...



* Por Fernando Yanmar Narciso

Lembranças de uma era menos vigiada


Numa de minhas várias noites insones, durante um dos meus constantes delírios nostálgicos dos tempos de infância (OK, eu sei que tenho apenas 25 anos, mas não existe hora pra saudade), buscava no Google coisas sobre os “longínquos” anos 80, e acabei esbarrando num blog. Dada a simplicidade de suas formas e cores, parecia não ser atualizado há uns quatro anos.
Nele, existiam várias fotos e campanhas publicitárias de junk-food (para os leigos de plantão, doces, salgadinhos, biscoitos e porcarias em geral que tornam a vida menos intragável) dos anos 80 e 90.
Só de ver aquelas imagens, me veio uma lágrima aos olhos e uma câimbra no peito. São tantas lembranças… Como não se lembrar do Lanche do Fofão? Dos Bombons do Fofão, dos Dadinhos, de tudo dele? A “boa” e velha Dizioli… Mesmo que o chocolate fosse pura manteiga de cacau e tivesse gosto de papelão, as bolachas murchas e tudo deixasse um gosto rançoso na garganta, eram sempre presenças garantidas nos baleiros da porta da escola.
Falando em manteiga de cacau, que tal os clássicos guarda-chuvinhas de “chocolate”? Ainda na linha de produtos com “chocolate”, como não citar as históricas bolachas recheadas e wafers Tostines? O viciante Lanche Mirabel? Os biscoitinhos Fofy da Nabisco, no formato de ursinhos? Se deixar, a gente fica até o ano que vem recordando…
Saindo dos sólidos pros líquidos, vem em mente o clássico Ki-suco. Pura tinta. Reza a lenda que um pacotinho daquele conseguia tingir uma caixa d’água inteira! Se dava, eu não sei, mas só de imaginar a química que tem ali dentro…
E a Xuxa, tentando convencer a nós, pobres criancinhas ingênuas, que o segredo de sua beleza eram o refresco Frisco, catchup, mostarda e maionese, tudo da Arisco? Sobre os refrigerantes, e a deliciosa tubaína Baré Cola, que vinha na garrafa de cerveja? Pop Laranja, Pop Cola, Mirinda, Crush, o refrigerante que mais tingia a língua entre todos. E as já há muito esquecidas latinhas de refrigerante totalmente cilíndricas, e que qualquer peteleco conseguia abrir. Nada de vida fácil e anéis de segurança…
E quanto aos populares “Porcaritos”, que era como as mães chamavam os Elma Chips da vida? Naquele tempo, os saquinhos não tinham aquela camada metalizada por dentro, e parece que vinham mais salgadinhos dentro que hoje. E quem não se lembra do Mandiopã, aqueles pedacinhos de massa que quadruplicavam de tamanho em contato com óleo quente? Assistir uma Sessão da Tarde ,ou então o Clube da Criança na Manchete, se entupindo com tudo isso. Não tinha nada melhor pra uma criança.
Agora, voltando ao tema da crônica. Em todos os comentários que eu li nesse ou em outros blogs, há consenso em apenas um ponto: 10 entre cada 10 comentários diziam “tal produto era muito melhor antigamente”,”era muito mais gostoso que agora”, “tinha gosto de infância”, “antigamente era mais doce”, “antigamente era mais colorido”, “antigamente isso”, “antigamente aquilo”… E o interessante é que todos eles têm razão. Quem sabe se é pelo fator nostalgia ou algo que o valha, mas naqueles tempos, o fator que determinava a qualidade de um produto era o sabor, em vez do valor nutricional. Naqueles tempos, eles até diziam nas propagandas que lingüiça é comida saudável! Pode? Não é de se estranhar que os moleques de hoje estejam tão sedentários e só queiram saber de vídeo game. Os doces de hoje têm tão pouco açúcar que é difícil conseguir alguma energia pra brincar.
Desde a virada do século XIX/ XX, onde os únicos remédios conhecidos para todos os males eram lavagem intestinal e sangria, o ser humano não pára de tentar adivinhar o que faz bem e o que faz mal. Naqueles tempos, acreditava-se que entrar dentro de uma tina d’água cheia de eletrodos e ficar tomando choques leves durante o banho fazia bem. E hoje em dia, com todos os avanços “científicos” vigentes, o que nós temos no ramo da medicina? Uma guerra contra tudo que é gostoso.
Numa era em que a “correção política” e a hipocrisia reinam triunfantes, temos a cada dia homens de óculos e jaleco dizendo que açúcar é ruim, que sal mata, que gordura trans é o grande mal da vida moderna… Que estranho, esses mesmos médicos viviam se entupindo dessas coisas quando jovens e continuam vivos… Todo mundo sabe que onde há sabor não tem comida saudável, e vice- versa. O que poucos médicos costumam levar em conta é que é impossível generalizar regras de saúde. Aquilo que faz bem para um pode ser a perdição do outro. Pessoas que passavam o dia comendo esses doces lotados de gordura hidrogenada e do perigosíssimo açúcar quando crianças continuam vivos, escrevendo em blogs. E provavelmente lendo essa crônica. Enfim, no mundo moderno temos que escolher entre dois estilos de vida: Ou somos saudáveis e vivemos muito, ou somos felizes e vivemos pouco.
Nem parece que foi ano passado, né verdade?


* Fernando Yanmar Narciso, 26 anos, formado em Design, filho de Mara Narciso, escritor do blog “O Blog do Yanmar”, http://fernandoyanmar.wordpress.com