quarta-feira, 24 de novembro de 2010




Uma nova experiência

* Por Mara Narciso

A primeira vez que o vi, estava em cima da mesa. Os pais e o avô o olhavam, sentado na cadeirinha, como a pessoa mais importante. Demonstravam que observar uma criança recém-chegada ao mundo fazia a vida valer a pena. Corri para engrossar o grupo de adoradores. Era uma festa em homenagem aos cem anos do bisavô de João Gabriel. Este é o nome do recém-nascido, uma criança branca, com uma carinha igual à de muitas.
De outra vez fui a Belo Horizonte. João Gabriel mora lá. O pai dele o trouxe para que eu o visse. Gostei de vê-lo alegre, sorridente, correndo para todos os cantos, como meninos da sua idade costumam fazer. Mas havia uma diferença: ele avançava até a porta, fazia um volteio com o corpo, sorria e corria novamente na nossa direção. Ainda não falava bem, porém externava estar feliz, para nossa satisfação. Não exigia atenção, não fazia nada para ser o centro, mas não tirávamos os olhos de cima dele.
Agora estou em Belo Horizonte. Quero vê-lo novamente. Vou a sua casa, e o encontro saltitante, risonho, falante, só que desta vez pede por atenção. Quer me mostrar o que tem em seu quarto. Aponta os seus tesouros e eu o acompanho contente por adentrar no seu mundo. João Gabriel está com dois anos e meio. Fala bastante. Seu cabelo cor-de-mel, sua pele branca, seus olhos escuros, seu sorriso de dentes de leite, mostram a graça da idade, mas sua loquacidade é o que me chama mais atenção.
No seu quarto de filho único tem mais brinquedos do que ele consegue usar. Enquanto vai trocando de interesse, mostra e fala rapidamente para que eu não saia do quarto, e noto que se expressa bem, o que é pouco habitual para a idade dele. O pai, orgulhoso, refere que a professora do menino comentou que ele tem um amplo repertório de palavras, e sua fala é diferenciada. Isso se deve ao nível cultural dos progenitores, ambos com curso superior, e pelo tempo que fica com o pai, que trabalha em casa, e pode dar assistência integral ao filho.
Enquanto o pai prepara um lanche, – a mãe está trabalhando – e conversa com minha irmã, faço uma coisa que não costumo fazer, e nem mesmo fiz com meu filho: sento no chão para brincar. Ficamos montando prédios, contando as pernas da centopéia, parafusando, desparafusando, apertando a barriga de bichos falantes. Procuramos não fazer bagunça. O menino alerta sobre isso. Também mostra umas luvinhas azuis e as coloca em minhas mãos, mesmo ficando metade delas do lado de fora. Depois diz saber usar o piniquinho, o aponta e mostra o xixi que tinha feito mais cedo. Então, no centro da sala, canta aos berros num microfone de verdade. A minha irmã brinca sobre a timidez do menino.
Vamos ao outro cômodo ver TV num canal de desenhos. Está passando uma animação de um dinossauro que tenta salvar seus ovos da destruição, mas eles rolam pela montanha. João Gabriel entende, fica aflito, e acompanha toda a história. Depois me mostra um livro de pano, todo ilustrado com cheiros, barulhos e múltiplas cores. Tem livros de outros tipos e os mostra com entusiasmo. Com esse gosto pelos símbolos, logo saberá o que eles significam. Vou à sala e falo para o pai, que a continuar dessa forma, a criança vai ler com três anos.
Então pede para colocar o uniforme do Atlético. Quer jogar futebol comigo. Escolhe a bola, e todo caracterizado como atleta, exceto pelas chuteiras adaptadas por uma botina, me chama, e vou, pela primeira vez na vida, jogar futebol com uma criança. No preparo do jogo, João Gabriel fecha as portas para a bola não derrubar nada nos quartos. A ação acontece no corredor do apartamento. Cada um numa ponta, vamos chutando e fazendo gols quando a bola passa debaixo das pernas dele ou das minhas. Quando isso acontece, coloco a bola no centro do “campo” para o reinício da partida. Quando ele cai, eu digo que foi falta e o mando cobrá-la.
Como ninguém mais come pizza sem tirar foto, fomos a nossa sessão delas. Mesmo sem pizza. Tiramos várias durante a visita. Lanchamos, e depois, chamando João Gabriel no cantinho da mesa, eu, que sempre fui avessa e tenho medo da sinceridade das crianças, falei para ele:
-João Gabriel, você é uma criança carismática. Ca-ris-má-ti-ca! Repete: carismática. Isso é uma coisa muito boa – afirmei.
Ele repetiu. Pedi ao pai para que não o deixasse se esquecer disso.
Nessas tantas vidas que vivi, em muito tempo, esse momento foi especial. Não, não estou exaltando qualidades fictícias de um neto. João Gabriel é filho de um primo querido, Rodrigo, e da sua mulher Vânia. Ele tem sim, algo que se pode chamar de carisma.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

6 comentários:

  1. Dra. Mara, foi um prazer conhecer o João Gabriel. O quadro que sua escrita fez dele tem definição fotográfica. Parabéns pelo texto.

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  2. Mara,
    Você está empolgadíssima com o João Gabriel.
    Criança conquista mesmo.
    Seu texto me fez lembrar do meu sobrinho. Pedro. Está com quatro anos. Uma figura. Se eu começar a escrever não paro mais....risos.

    Beijos !

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  3. Passo pela Dudinha e ela me pergunta:
    -Onde você vai tia?
    Digo-lhe que vou na praça.
    -Você vai no pula-pula?
    Essa menina me encanta todos os dias...
    Não há como não se render.
    Beijos

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  4. Mara

    E pensar que há pessoas que não gostam de crianças, e mais: que as maltrata...Para quem gosta tanto como você, e me incluo nisso, parece ficção, não é?
    Seu carinho pelo João Gabriel fica muito claro no texto.
    Beijos

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  5. Queridos Marcelo,Celamar, Núbia e Risomar,

    O que me espanta, no encontro com João Gabriel, é que eu, embora mãe amorosa, que teve parto normal por puro amor, e amamentei por oito meses, nunca brinquei com criança alguma, nem mesmo com a minha. Escrevi o texto, por que foi algo novíssimo em minha vida. Menino, só no colo da mãe, à distância e por pouco tempo. Jamais tive meu instinto maternal espressado dessa forma.
    A você, obrigada pelo carinho.

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