segunda-feira, 29 de novembro de 2010




Doei até meus ossos pelo eterno amor

* * Por Eduardo Murta


Chegue mais perto, chegue, se aproxime sem temor, empreste seus ouvidos. Mais que os ouvidos, sua compreensão, porque esperei luas demais, até que pudesse lhe contar. Cultivei a esperança como se a ninasse, e eis-me aqui. Um tremor leve me passeia ainda à alma, mas sinto que estou pronta. Podemos seguir? Não vá interpretar como lugar-comum: me chamo Maria. Estou, perceba a delicadeza em minha pose, à direita, nesta imagem que agora lhe visita, feito fosse vento se assomando a todas as frestas da casa.
Note como estou feliz. Não se apiede, portanto. João me acolhendo como um menino acolheria passarinhos enfermos. Os símbolos daquela manhã me acompanhariam vida afora, ainda que soe irônico eu usando expressões assim. Me recordo do sol generoso dominando o céu. A colheita, os deuses fossem abençoados, abundante e rica. Ah, como tínhamos razões para celebrar. Corpos pintados, cantoria e dança iriam varar as noites na aldeia. Iriam. Já ouviram, claro, falar em sacrifícios, tradicionais naquele tempo, não? Fora exatamente a mim quem o chefe do clã escolhera.

Flagrei quando seus dedos magros, unhas protuberantes, se moveram, indicativos. O grupo se calando, em reverência. Vinham em minha direção. Dezesseis anos, a primavera da sexualidade incensando todos meus sentidos, e sob o juramento de que a ninguém, além de João, me entregaria nessa terra. E ele, pactuamos, negaria guerras, a que jamais me perdesse. Me lembro ele cruzando rumo à ala das mulheres, quebra suprema de ritual. Fez-se um silêncio longo, João caminhando a mim. Soou a uma transição interminável. E sua mão tocou a minha no momento em que um dos membros do Conselho de Anciãos interrompeu, abrupto, com um "Basta!!!".

Já sabíamos como casos assim terminariam. Eram sentenças sem apelação. Permitiam que nos despedíssemos dos entes queridos, que vestíssemos nossas melhores roupas (elegi minha túnica de algodão) e disséssemos uma só frase no adeus coletivo. Eu partiria com uma convicção e julguei que deveria partilhá-la. Fui sucinta: - O mundo um dia conhecerá nossa história. E me conforto agora, ao perceber que a vida, logo ela, nos revelou.

Sinto ainda na boca o gosto do preparado de ervas que nos fizeram beber naquela manhã. Amargo. E implacável o bastante para que fizesse adormecer mesmo Tigres de Dente de Sabre. Flanamos por um instante, como atravessando tempestades, o corpo de João foi tomando o meu, até mergulharmos num estado em que tudo se cala. Foi longa a espera, mas cá estamos nós, eu e João, nos apresentando. Somos uma migalha inteiramente nua do querer sem datas. Um sinal, vá entender o mapa contraditório da existência, um sinal mais vivo que nunca da paixão. Um sopro do amor em caprichosa pose para a eternidade.

* O casal de esqueletos foi encontrado em fevereiro de 2007, em Mântua, no Norte da Itália. Arqueólogos estimam que tenham entre 5 mil e 6 mil anos.

** Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. Quanta poesia para desenhar o que poderia ser
    talvez uma paixão proibida...
    Belo texto Murta.
    Abraços

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  2. Ah, que maravilha de amor eterno, mais uma vez eternizado pelo seu texto emocional, vazando sentimento que vai durar outros cinco ou seis milênios. Entrega dos amantes, entrega sua, Eduardo. Só posso reverenciar o casal e você.

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  3. Murta: estou com a respiração suspensa!!!Que texto!!!Poesia pura...E você se inspirou em uma notícia de jornal? Haja talento!!!Adorei. Parabéns!
    Abraços

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