sábado, 30 de outubro de 2010




Inês

* Por Marco Antonio Araújo

A morte. Que vem depois dela sem você? Como pode¬rei entrar em nosso quarto sempre tão arrumado se nenhum objeto terá outro significado além daquele associado à dor de não mais haver desculpas para a minha infelicidade? Como poderei sofrer sem você? A partir da sua ausência todo sofrimento terá origem apenas em mim isso é horrível eu enlouqueço. Eu a amo? Oh meu deus eu não sei.

Quantas vezes pude usar você como álibi, atenuante para minha absoluta mediocridade? Quantas perguntas deixei de me fazer só porque suas respostas eram insatisfatórias? Você dizendo “eu o amo eu o adoro não posso viver sem você me beija me aperta nunca me abandone eu vou morrer eu preciso eu quero eu o amo eu o adoro”. E eu pensando ai que tédio essa mulher aí que será dela sem mim. E agora, o que será de mim sem você? Eu a amo eu a adoro?

Se eu chorar agora, resolve? Devo beijar seus lábios frios, roxos, inefáveis? Mas eles não vão me murmurar elogios soltos, generosos, inconseqüentes, como aqueles todos que ouvi minha vida inteira ao seu lado sem dar valor. Então eu choro, eu não consigo. O que é que eu faço agora? Onde está minha blusa cinza que só você sabe onde está o sabonete a agenda a lista de compras, o meu futuro? Onde está?

Que foi que eu fiz, me diz rápido antes que eu tenha certeza que você não responderá nunca. Jamais. Ai, ai, e amanhã e depois de amanhã, o ano que vem, quando chegar minha hora, o que será de mim assim tão sem você? Eu não vou mais ter uma casa pra voltar com você lá me esperando, aquele sorriso tolo que eu achava cretino só pra poder me irritar com você, mesmo que fosse um sorriso lindo que estivesse lá guardado só pra mim desde o início da tarde quando você já começava a me esperar. Você não vai mais me esperar, responde, eu não vou mais me irritar com você, me diz, abre a boca, me beija, aquele beijo bobo sempre apaixonado, eu me irritava eu não gostava, eu queria que você me mordesse me xingasse me desafiasse, só pra eu poder xingá-la chamá-la de burra com muita raiva eu queria lhe bater, passar a raiva sentir remorso me arrepender, eu queria que você me desafiasse me chamasse de burro me xingasse, ameaçasse ir embora eu ia rir duvidar, você nunca terá coragem de me deixar eu ia dizer, vai, vai, tenta, eu duvido, o que será de você sem mim eu ia gritar, você está aqui nas minhas mãos, você faz tudo que eu quero, eu odeio isso eu detesto eu desprezo, eu a amo eu a adoro não posso viver sem você, me beija me aperta não me abandone eu vou morrer eu preciso eu quero eu a amo eu a adoro, volta pra mim, volta pra mim, volta pra mim.

— Como você consegue ficar tão frio? Nem parece que sua mu¬lher morreu.

Volta pra mim. Não me deixe aqui nesse mundo. Acorda e me diga aquelas coisas todas que eu nunca dei valor, me dê mais uma chance agora que já é tarde e eu não posso mais sem você eu nunca pude eu sempre quis, eu não consigo. Você jurou que nunca ia me abandonar, que sem mim você morria, você mentiu me enganou é vingança, eu não mereço eu não sabia, você nunca me disse que ia doer tanto tanto. Por que você não avisou que eu ia ficar desse jeito, tão assim sem você? Como é que eu faço agora que não há nada a fazer e tudo ficou por ser feito? Ainda é cedo, há muita dor por vir e eu tenho medo de tudo estar apenas começando, a solidão, a noite imensa, o sono impossível, a cama inútil, a manhã terrível, o dia interminável.

E eu não tirei nenhum retrato seu, ninguém tirou nenhuma foto nossa além do casamento a minha cara séria, o seu sorriso tolo, eu não sorri na hora, eu não sorri depois, posso sorrir agora como se fosse antes, como se estivéssemos juntos naquelas viagens todas que só não fizemos porque eu não quis, mas eu não sabia que era importante ter fotografias, colecionar lembranças, emoldurar sorrisos, me dê a última chance, eu compro as passagens, faço as reservas, contrato um fotógrafo, fico rindo à toa.
— Está ficando louco? Isso é hora de dar risada? Por favor, controle-se.

Então será desse jeito, você vai ficar aí completamente imóvel? Nenhum movimento? Porque senão eu também vou ficar aqui completamente imóvel, nenhum movimento. Não adianta nada essa dor absurda, inédita, insana, desproporcional? Você não se move, suas mãos que eu quase não beijei não se movem, suas pernas que tantas vezes ignorei não se movem, sua boca que eu sempre emudeci não se move, seu corpo meu corpo não se movem, eu não me movo você não se move. Vamos ficar aqui parados, desproporcionais? Levanta, vem, me diz novamente tudo que foi dito sem que eu quisesse ouvir, agora eu ouço, escuta, agora eu ouço, a sua voz seus pedidos suas palavras simples seu português ruim, agora entendo tudo, está ouvindo? Eu tenho coisas pra dizer e nunca disse, pedidos pra fazer e não sabia, conselhos pra pedir e vou cumpri-los, até propostas pra você que eu não devia. Levanta, deixa de besteira, não seja estúpida, foi tão cruel aquilo que eu não fiz? Se você não me disser, eu não vou embora, eu fico aqui, nem imagino que passo dar, que caminho seguir, que sapato escolher, qual camisa combina, a que horas jantar, que lençol está limpo, o que eu compro pra mim, o que falta fazer, se eu posso parar.
— Por favor, pegue pelo menos uma alça do caixão. Está todo mundo olhando.

É o seu rosto isso que eu não vejo mais? Esse vulto é você que eu tanto desprezei? Essas sombras que se afastam são o que eu desperdicei? Será assim, silêncio, escuridão, minha memória é sua, nada ficará, que chance eu tenho se não há do que lembrar, se você me amou sozinha, se eu ficarei aqui e só você pode voltar, agora sou eu que espero me diz o que, só eu aguardo me explica como, sou eu que fico nem sei onde, você se vai por que por que, o que é que eu faço, o que é que fiz, o que falta do meu passado, o que sobrou do futuro, que presente é esse o meu, o que vem da morte depois de você?
— Senhor, todos já se foram e eu preciso fechar.
O que vem depois da morte sem você?
— Senhor...
A morte, o que vem depois de você?
— Me desculpe, senhor, mas eu tenho que limpar o salão.
— Como?
— Todos já se foram.
Sem você, a morte, depois, o que vem?
— Só ficou o senhor.
— Eu sei.
Agora eu sei.

* Jornalista, ex-professor e coordenador de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero. Trabalhou nos jornais A Voz da Unidade, do PCB; A Gazeta Esportiva, onde foi diretor de redação e criou as revistas Educação, Língua Portuguesa, Fera! e Ensino Superior.

Um comentário:

  1. Maravilhoso! Quem já amou um dia torna-se um ser lacrimejante automaticamente. Um epitáfio de primeira, e em vida, embora um pouco em morte. Parabéns!

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