sábado, 18 de setembro de 2010




A índia da Guatemala

* Por Urda Alice Klueger

Em 2003 fui ao 3º Fórum Social Mundial de Porto Alegre, onde muitas coisas aconteceram. Foram tantas, que poderia escrever um livro inteiro a respeito, mas vou me limitar a contar uma história que lá vi, de uma índia guatemalteca, que muito me impressionou.

Tinha eu ido a uma oficina chamada “Mujeres Solidárias”, onde mulheres argentinas iriam contar de como haviam se unido para conseguir ao menos que seus filhos comessem, quando a grande crise deles começou. Cheguei cedo, tomei assento, e fiquei a observar as lindas jovens argentinas que tinham arregaçado as mangas e ido à luta quando seu país “fizera água”, em dezembro de 2001. Era visível que todas aquelas moças vinham de família rica, o que lhes dera boas pernas, boas maneiras, gosto para se vestir bem, que tinham comido muito bem na infância, embora uma ou outra, agora, estivesse magra em excesso. Todas tinham aspecto europeu, e quando entrou uma índia no recinto, chamou a maior atenção. A índia era idosa, baixinha, atarracada, e usava uma roupa bordada que eu era incapaz de reconhecer como sendo de algum lugar determinado. Sucintamente, as argentinas contaram das providências que tinham tomado para garantirem a comida dos filhos, como trabalharem de enxada na mão em terrenos baldios, transformando-os em hortas comunitárias, como criaram refeitórios coletivos para que as crianças de cada bairro pudessem comer. Pensei que falariam mais – na verdade, tinham vindo para ouvir e aprender.

Então, diversas outras representantes de outros países falaram de trabalhos parecidos que faziam em grupos de mulheres solidárias, e falaram duas bascas, uma brasileira de Maceió, uma venezuelana, etc. Todos estavam sentadas em círculo, e a estranha índia como que se excluíra, estava lá num cantinho da sala, com sua inegável cara americana e suas flores bordadas no vestido, como se tivesse algum receio de tantas mulheres com caras européias.

A coordenadora dos trabalhos, então, chamou a índia para falar. Não guardei o nome dela, mas apresentaram-na como uma grande personalidade, alguém que como que caíra do céu para participar daquela discussão. E então a índia falou.

Ela era baixinha e atarracada, já disse. Quando abriu a boca, porém, agigantou-se na sala, deixou pequeninas aquelas lindas moças de longas pernas européias.

Ela contou do que ocorrera na Guatemala depois da guerra: restaram milhares e milhares de mulheres viúvas e crianças órfãs, e as mulheres guatemaltecas eram preparadas apenas para servirem aos maridos: não aprendiam a ler e nem a ter nenhuma profissão. Até hoje, 70% das mulheres guatemaltecas maiores de 35 anos ainda são analfabetas. A guerra deixou-as desamparadas, e como as argentinas, quando elas viram suas crianças com fome, reagiram. Basicamente, fizeram a mesma coisa: providenciaram comida, profissionalizaram-se, aprenderam a ler, não só nas cartilhas escolares, mas também nas amplas páginas da História e do Capitalismo, e descobriram muitas coisas que antes não sabiam.

Então houve um momento em que o básico estava garantido, e elas já sabiam que suas crianças não mais morreriam de fome. Que fizeram, então? Pela sua tradição, havia que ter os corpos dos seus maridos nos cemitérios, para que pudessem fazer-lhes visitas, e levarem seus filhos a visitarem os pais. Ora, os homens haviam morrido em grandes batalhas, e haviam sido enterrados às centenas em valas comuns. Achei tétrico o que ela contou, mas há coisas que a gente deve contar adiante: as mulheres guatemaltecas abriram as valas comuns, e cada uma acabou por achar o seu homem. Não me perguntem como os reconheceram; talvez o clima de lá seja diferente e tenha conservado os corpos, não sei. O que sei é que cada uma levou o seu marido para o cemitério da sua cidade, da sua aldeia, cada uma obedeceu à tradição do seu povo.

Depois de contar isto, aquela mulher ergueu a cabeça e cruzou as mãos, numa atitude que dizia: “Missão cumprida”. Elas podem, agora, por todo o sempre, visitar seus maridos, assim como seus filhos podem visitar os pais. Mulheres são capazes de coisas que a gente nem imagina!


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Dizem que quando o corpo humano está exaurido, num estado de fadiga extrema, ainda é capaz de render mais 30%. Deve ser o caso dessas mulheres argentinas e guatemaltecas. Diante de casos assim nos envergonhamos das nossas lágrimas tão fáceis de rolar.

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