quarta-feira, 29 de setembro de 2010











Boa é bom no feminino

* Por Mara Narciso

“O tempo passa, o tempo voa, e a Poupança Bamerindus continua numa boa...”

O uso vai mudando o significado de alguns conceitos, e mal percebemos. Houve um tempo em que boa cozinheira era aquela de forno e fogão. Boa mesa era mesa farta e variada. O modo de vida permitia comer e andar com natural manutenção do peso. Hoje esse tipo de mesa e cozinheira não traz felicidade. Melhor não se aproximar das tentações da mesa. Vejamos o que é comida boa. O sabor, e a quantidade que sacia eram os itens mais importantes. Hoje invocamos a higiene, a aparência, os poderes nutritivos, e o adjetivo saudável. Não seria hora de chamar a boa comida de alimento inteligente?
Havia aquele que era um bom garfo, ou seja, comia e repetia. Mesmo sendo o terror dos rodízios, fazia graça comendo exageradamente, e acabava sendo o rei da mesa, atraindo todas as atenções, e na reprise ingeria mais. Era o via-vira do garfo e faca.
Alguém tímido chega numa festa onde um grupo ruidoso mal o vê chegar. Murmura pelos cantos um cumprimento de boa noite para servir de escudo, mas é inútil. Isso não garante e nem impede que a noite seja realmente boa. Quando a chegada é nesse estilo, a saída precisa ser à francesa. Timidez não é coisa boa.
Uma flor tem por nome boa-noite. É branca e tem um cheiro ativo que inunda o jardim. Muitos acham o odor agradável, lembrando a infância, tempo em que era possível caminhar à noite e sentir esses perfumes.
Uma droga colocada sorrateiramente numa bebida inocente causa grandes perdas de dinheiro e até da vida. O nome do artefato: boa noite Cinderela.
Fotos de cinquenta anos atrás nos mostram uma interessante escassez de pessoas gordas. E hoje, comparando os soldados americanos da Guerra do Vietnã com os da Guerra do Iraque, além do aparato tecnológico, nos chamam a atenção os pelo menos trinta quilos corporais a mais que os soldados atuais têm. Aí entra o pedido de atenção a boa forma.
O locutor de rádio diz que o sol está brilhando, não há nuvens, o termômetro marca 35 graus, e não há previsão de chuva. E termina afirmando: tempo bom e temperatura em elevação. Ficamos sabendo que tempo bom é assim.
Havia em Montes Claros um óleo de cozinha chamado Dona-Boa, mas seu nome foi vetado há meio século, pois descobriram que havia outro óleo com o mesmo nome, então mudaram a marca para Boa-zinha. Ainda nos nomes comerciais, a Q-Boa é uma água sanitária de seis décadas, líder de mercado e que está em fase de revitalização. Outro produto que trombeteia ter mil e uma utilidades é o Bom-bril. E o que dizer do chocolate que tem a palavra bom duas vezes no nome: bom-bom?
Bom-bocado é um doce que chegou a dar nome a um restaurante concorrido aos domingos. Foi um dos primeiros self-services da cidade, com molhos adocicados, tentando ser o que não era: um popular sofisticado.
Não conheço loja onde se venda conselhos, mas sempre ouço alguém metendo o bedelho e dando seu bom-conselho de graça, porém dizendo que melhor seria vendê-lo. Dá pra imaginar alguém implorando: compro um bom-conselho? Não podemos nos esquecer das consultorias, que de forma competente ou não, cobram caro pelas suas preciosas orientações.
Negro bom e o bom selvagem se referem a pessoas dóceis, domesticadas, assim nomeadas pela classe que manda. Bom, nesse caso, significa conformado, e essa bondade serve a quem deseja a obediência deles.
A mudança de lugar do adjetivo em relação ao substantivo muda o significado. Vejamos: vida boa e boa vida. A primeira gera inveja e a segunda também, mas por motivos diversos. Quando vemos alguém num momento de descanso, em total e completo relaxamento físico e mental, pensamos: “Esse leva uma vida boa!” Para alguém que é publicamente improdutivo, mas que tem uma existência de rei é possível que seja invejado, não pelo ócio, mas sim pelo conforto que desfruta.
Nessa linha, pode-se ir adiante, passando do abstrato ao concreto: boa mulher e mulher boa. A primeira refere-se a virtudes invisíveis e a segunda refere-se unicamente a qualidades palpáveis.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

4 comentários:

  1. Interessantes estas questões semânticas e múltiplos significados... e olha que você ficou só numa palavrinha de três letras. Ótimo texto, Mara.

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  2. E ainda assim há quem não note essas nuances tão bem descritas no seu texto Mara.
    Lembro-me que antigamente nos apertavam as bochechas
    elogiando nossas gordurinhas e dobrinhas, hoje
    a gente corre com a criança para o médico com
    medo da obesidade mórbida.
    Ótimo texto Mara.
    Beijos

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  3. Interessante texto, Mara! Foi muito bom ler! Abraço!

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  4. Marcelo, Núbia e Sayonara, é bom ouvir o eco do escrito, o som que eles nos traz, mesmo mudo, pelas letras na tela. Texto despretensioso não existe. É falácia. Há sempre a pretensão de uma troca, de uma interação, e quando acontece, atingiu a meta. Muito obrigada!

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