terça-feira, 24 de agosto de 2010







A Vila dos Artistas

* Por Risomar Fasanaro


Sábado umas quinze pessoas fundadoras da Vila dos Artistas foram homenageadas no Sarau da Educação da Secretaria de Educação de Osasco. Eu estava entre os homenageados. Fiz parte da Vila desde o que chamo a pré-história da Vila até o dia em que foi destruída.

Pessoas de todos os lugares se reuniram para aquela comemoração, para relembrar o que foi aquele reduto.

Tudo começou em 1976 quando o então prefeito Francisco Rossi resolveu fundar em uma escola estadual desativada no bairro do Jardim Cipava, uma Vila para os artistas de Osasco.

Sua idéia era que fosse um núcleo residencial, onde os artistas morassem e criassem seus trabalhos. Para isso, convidou seu primeiro e mais importante morador, Leopoldo Lima, um artista plástico de Ribeirão Preto, que além de ter um trabalho único, de altíssima qualidade, veio a ser uma espécie de guru para os artistas da cidade que com ele conviveram.

Lembro-me do primeiro dia em que estive no local. Os barracões de madeira estavam muito rebentados, não havia nem luz, nem água. Apenas um cômodo de alvenaria.

Eu tinha um Corcel e ia com Carlos Marx e José Pessoa, então meu namorado, à Secretaria de Obras buscar tábuas, pregos, tintas...E os dois consertaram como puderam aquelas paredes para receber Leopoldo.

Irene, na época mulher de Carlos Marx, e eu plantávamos flores e algumas árvores que se juntaram às que já havia ali.

No dia que chegou a mudança de Leopoldo estávamos lá. Com ele tinham vindo Waldomiro Sant’Anna, artista plástico e Ruthenford, ambos de Ribeirão também.

Era muito engraçado ver Ruthenford, uma espécie de lúmpen que acompanhava Leopoldo aonde quer que ele fosse, carregando uma xícara, uma panela de cada vez, e lentamente levar do caminhão até o interior do único cômodo de alvenaria, que foi onde Leopoldo se instalou, enquanto nós descarregávamos as peças mais pesadas.

Alguns dias depois voltamos lá. De longe vi uma cortina feita com roupinhas de crianças emendadas, enfeitando a janela daquele cômodo onde Leopoldo se instalara.. Naquele instante tive consciência de que Leopoldo não era uma pessoa qualquer. Fisicamente, ele era a cópia fiel de Van Gogh: magro, barba e cabelos ruivos, olhos intensamente azuis e de uma ternura sem limites. Calmo, tranqüilo, ficava horas esculpindo seus quadros em tábuas de caixotes de maçã. Mas isso não evitava que de repente se irritasse com os que o rodeavam e expulsasse todo mundo. Eu só conheci seu lado terno. Tivemos Carlos, Irene, José e eu o privilégio de ser amados por ele.
Não vendia nenhum de seus trabalhos, por isso, vivia em uma situação de extrema pobreza. Diziam que em Ribeirão Preto, a mulher dele às vezes se revoltava e vendia-os escondido.

Entusiasmei-me com seus trabalhos e ele me convidou para aprender a esculpir. Assim, formamos um grupo e embora eu não tivesse nenhum talento, continuei o curso só para ficar perto dele, para conviver com aquela pessoa tão sábia, tão carismática.

Na turma de alunos havia gente de talento como Regina Célia Crepaldi e o Cido, cujo sobrenome não me recordo, e que foi o melhor aluno que Leopoldo teve em Osasco. O curso de pirogravura e entalhe alcançou tanto sucesso, que o prefeito resolveu fazer uma cerimônia com coquetel e tudo, para a entrega dos certificados.

Durante a cerimônia Rossi falou sobre a importância da criação de um espaço de convivência para os artistas, que agora tinham onde morar e realizar seus trabalhos e ensinar o que faziam. Depois, convidou o Leopoldo para fazer um discurso. Antes não o tivesse feito.

Leopoldo com a roupa despojada de sempre, as sandálias de couro franciscanas talhadas por ele a canivete, denunciou as péssimas condições dos barracões, disse que não havia nem água nem luz, que ele tinha precisado tirar luz da favela, para poder viver ali. Que daquele jeito “ chefe, não dá pra ficar ali. Até agora não tive condições de trazer minha família. Aquilo ali tá uma merda!...” e enquanto Rossi disfarçava, nós já carregávamos Leopoldo para comer uns salgadinhos.

A família do artista esteve na Vila em algumas ocasiões, mas não conseguiu viver ali, devido à falta de infra-estrutura.

Além de Waldomiro Sant’Anna, o Mirinho, artista plástico de Ribeirão, e de Ruthenford, o pintor Paulo César também passou a residir na Vila.

Ruthenford era uma figura muito especial. Engraçadíssimo. Ele e Leopoldo nos contavam mil aventuras que tinham vivido, entre elas que em Ribeirão os professores universitários levavam Ruthenford para dar a aula inaugural para os calouros de medicina, e que o Ruthen enrolava os calouros, mandava-os anotarem tudo que ele dizia, e só no final da exposição é que revelava que tudo aquilo não passava de brincadeira.

Em 1973 realizávamos a Feira de Artes na Praça Duque de Caxias todos os domingos. Carlos Marx, José Pessoa, Irene e eu a coordenávamos, e era um sucesso. Era ali que Leopoldo expunha seus quadros de entalhe.

Todos os domingos a feira ficava lotada. Artistas de São Paulo e de outros municípios também traziam seus trabalhos.

Além de artesanato, promovíamos apresentações musicais e para incentivar a participação, entrevistávamos os expositores e publicávamos as matérias em uma página que tínhamos no “Jornal de Osasco” intitulada “Veredas”.

Um dos expositores da feira era o José Ranciaro que além de artesão era marceneiro. Leopoldo Lima o convidou para ir até a Vila, e conhecendo seu trabalho, sua garra, convidou-o para morar lá.

José Ranciaro aceitou o convite, e a partir dali, a Vila tomou um novo impulso. Ele e sua companheira Elisete, tornaram-se os coordenadores daquele espaço. Ele passou a se chamar Zé da Vila, e ela Baiana. Àquela altura muitos outros artistas passaram a morar ali.

Os dois estabeleceram uma interrelação com a comunidade da favela vizinha e com isso trouxeram aquelas pessoas para o convívio diário na Vila. Da prefeitura o único benefício que recebiam era um ramal telefônico, mais nada. A vila era independente. Mantinham-se com o que recebiam dos ingressos das apresentações teatrais, musicais e das aulas de violão, pintura, teatro. Para ter iluminação providenciou-se um “gato” tirado de um poste. Assim, não pagavam nem luz nem água.

Acompanhei todo esse processo e pude ver o crescimento daquelas pessoas que nunca tinham visto um filme, uma peça de teatro e ali passaram a ter aquelas oportunidades. Estava lá quando o primeiro filme foi apresentado, e me lembro muito bem da reação daquela platéia formada em sua maioria pelos moradores da favela, muitos descalços, ou com chinelas havaianas, com roupas remendadas. Houve reações de riso, de deboche, e de uns cutucando os outros durante a sessão.

Uns dois, três anos depois, pude assistir a outra sessão de cinema e não consegui conter a emoção ao ver que aquelas mesmas pessoas agora não só assistiram ao filme com atenção, como participavam ativamente do debate que se promoveu depois.

O que os artistas da Vila realizaram foi um trabalho de política cultural único nesta cidade.

Hoje, depois de tanto tempo, é difícil acreditar que um dia, em plena ditadura militar, esta cidade contou com um grupo de jovens cabeludos, barbudos, que sem nenhum apoio governamental realizou um verdadeiro trabalho como aquele.

Que naquele espaço, além de arte, se lia e se discutia política. Que a escuridão da ditadura não nos sufocou. Que muitas vezes para exibir um filme cercávamos o projetor para impedir que a polícia nos atacasse e o levasse. E que apesar de toda aquela repressão, foi ali, na Vila dos Artistas, que pela primeira vez vi, em um show do compositor Alcides Neves, uma performance com uma mulher inteiramente nua com o corpo todo pintado por Juçara Rodrigues, quando nem se falava em pintura corporal, nem em Globeleza...

Era ali também que discutíamos as questões indígenas, liderados por Angélica, descendente dos índios caigangues e que morava na Vila.

Era ali que acontecia o Canto de Julho, as festas folclóricas, os ciclos de cinema nacional e estrangeiro, além do trabalho cotidiano com aulas de música, teatro, desenho, pintura, atividades na Biblioteca para as crianças do bairro, etc.

Muitos dos que lá viveram ou ali se apresentaram continuam trabalhando com cultura, com arte: Alcides Neves, Déo Lopes, Billo Mariano, Isa Ferreira, Maria da Paixão, Paulo Netho, Raio, Regina Vasques, Samuel, Zé Geraldo, Luli e Lucina, Premê, etc.

Com o tempo, as dificuldades financeiras foram aumentando, e a falta de apoio inviabilizou a continuidade do trabalho.

Os freqüentadores daquele espaço eram pessoas que também viviam dificuldades financeiras, por isso o Zé e a Baiana resolveram ir viver na Bahia. Lá fundaram um centro cultural em Teixeira de Freitas onde desenvolvem um trabalho com cultura, semelhante ao que desenvolviam aqui.

Após a saída do Zé e da Baiana, a Vila voltou a viver alguns momentos de glória com Samuel Batista, Paulo Netho, Raio, Tadeu, Maria da Paixão, Isa Ferreira, Regina e tantos outros.

O Grupo Veredas, do qual fazíamos parte, mantinha uma convivência estreita, quase diária com a Vila dos Artistas. Nos finais de semana, juntos realizávamos atividades nos centros de vivência, nos bairros de Osasco, promovendo apresentações de MPB, rodas de ciranda, bumba-meu-boi e declamação de poesia. Mas um dia tudo isso teve um fim.

Em 1990, o mesmo prefeito que havia criado a Vila, a destruiu. No dia da destruição alguém me ligou avisando e fui para lá. Alguns dos antigos artistas/moradores e freqüentadores estavam presentes àquele quadro de horror.

Não só os barracões tinham sido derrubados, também as árvores, algumas delas centenárias- todas derrubadas. Além de cultural foi um crime ambiental.

Fomos recebidos por um policial. No fundo do terreno, um barracão de madeira fora construído e, segundo o policial, o prefeito o autorizara a residir ali.

Ligamos para a prefeitura pedindo explicação e o ator Ricardo Dias, funcionário da Secretaria de Cultura, foi até lá para representar a secretaria. Lembro de ter me dirigido a ele chorando e, entre outras coisas ter lhe dito: “Ricardo, esse é o prefeito que você defende?” e que ele se desculpava dizendo que “dentro de pouco tempo a Vila seria reconstruída. Que tinha a garantia do prefeito”. Mas aquela promessa, como tantas outras que os produtores culturais já ouviram nesta cidade, nunca se concretizou.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

11 comentários:

  1. É triste ver o fim de um sonho, de um projeto tão bonito.
    A impressão que tenho é de que a arte, a cultura
    são irrelevantes e portanto substituíveis.
    A arte pode vir de qualquer lugar desde que se abram
    as portas para ela.
    Abraços Riso

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  2. Que pena! Foi um gesto pioneiro que rendia frutos, mesmo que com vários problemas. Como estava maior que o criador a saída encontrada foi acabar com tudo. Não vejo outra palavra melhor do que crime para caracterizar tal ato. Mesmo há tanto tempo, é preciso denunciar e cobrar.

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  3. Gostei muito de conhecer a história da Vila e a sua participação nela, Risomar! Homenagem merecida. Beijos.

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  4. Pois é, minhas queridas. Foi um sonho,como disse a Núbia, e um crime tê-la destruido conforme disse Mara, e tal qual um sonho durou pouco e um dia acabou.Este foi apenas um dos inúmeros "crimes" contra a Cultura que vemos tanto acontecer.
    Obrigada pela solidariedade.
    Beijos

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  5. Digaí,

    É reconfortante saber que alguém não esqueceu daquele reduto maravilhoso que foi a Vila dos Atistas, lá eu conheci o Zé da Vila, Baiana, Samuel, Bilo, Raio, Preta, Marli, Lucídio, Luiz Pedro, Armando, Antonio, Daniel, Lú... Também tive a felicidade de poder cantar no palco da Vila.
    Penso que tudo aquilo que foi elaborado naquele ambiente da vila ficará em nossas mentes e corações.

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  6. Pra mim foi uma época muito boa, Poder tocar no Acorde, participar dos Cantos de Julho ... a homenagem foi muito bonita.

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  7. Oi, estou procurando José Alberto Ranciaro, que você cita aqui em seu post. Você tem o contato dele ainda? É que faço uma pesquisa sobre Elvira de Almeida, ele trabalhava com ela. Ela que projetou um parquinho que não deve existir mais na Vila dos Artistas. Você sabe dele?
    Obrigada pela atenção, Laura.

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  8. Este ano nos 50 anos de Osasco,minha escola irá retratar essa história no desfile cívico de 07 de setembro de 2012. Caso tenha idéias de como podemos transmitir tal ato a população Osasquense, gostaríamos de sua visão e apoio. Somos Da EMEF José Martiniano de Alencar do Jardim Ipê.Sou a professora Luciana Borin (Informática Educacional) e levarei o assunto a todos alunos para pesquisa de campo. Agradeço sua atenção!

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  9. Eu estudei entalhe na Vila, com o professor Lucênio. Era na época tb do Zé e da Baiana. Teve uma cena triste tb, qdo o filho do Zé morreu afogado na piscina dos patos. Tenho saudade da vila. Moro bem próximo aqui da Vila, sou vizinho do Bilo, Zé Carlos, família da Maria da Paixão, Marli e Roseli. Gostei bastante de lá. Pena que não exista mais. Márcio Andrade.

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  10. Oi Risomar eu estudei no Grupo Escolar do Jardim Cipava 1º a 4º série e achei muito estranho quando vi umas galinhas morando ali onde estudei, e um dia quando estava olhando as galinhas e esperando o momento para entrar na minha 5º série da Escola Estadual Deputado Guilherme de Oliveira Gomes me aparece um cara muito estranho vestido com roupas coloridas e começa a me xingar(quase peguei trauma da Arte). Mas me curei e depois vim a ser um dos "Operários da Arte" na época do Raio e do Samuel Batista. Lá conheci pessoas maravilhosas que me ajudaram a ter uma real dimensão da Arte, que parece que faltou para o prefeito fundador, hoje todas as pessoas que passaram pela Vila fazem parte do meu coração. Viva a Vila dos Artistas de Osasco que estará sempre no coração de todos nós.

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  11. Estava eu a procura de imagens antigas da escola Deputado Guilherme de Oliveira Gomes e me deparei com seu artigo. Ao ler o que você escreveu senti como se um filme passasse em minha mente. Conheci quase todas as pessoas citadas neste artigo. Eu era ainda uma adolescente, meu pai (França) assíduo frequentador da Vila sempre foi um incentivador da arte e nos incentivava a conhecer e apoiar a criação e manutenção da Vila dos Artistas, na forma e na concepção original do projeto. Conheci muitas pessoas ali e aprendi muito também. Fiz muitos amigos e hoje ao ler o que você escreveu me senti parte desta historia, senti saudade e foi como se eu tivesse voltado no tempo.

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