segunda-feira, 23 de agosto de 2010




Embrulhem um coração para viagem

* Por Eduardo Murta



Fosse a fronteira das personalidades, Dara e Nilo estariam em bordas opostas. Ela, em oferta risonha de doação. Ele, em retração que lembrava conchas protegendo pérolas. Haveriam de se encontrar, porém. É nela, em nada mais, que o domador de leões pensa, a mala parda sustentada à mão esquerda, vendo a caravana sumir no baixadão. Largado num beiral de estrada que, tinha certeza, ligava nada a lugar algum. Sob sol impiedoso e o castigo do dono do circo: baixar com roupa de gala, o jaquetão vermelho, a cartola negra e chicote de apresentação.
Sem direito a despedida. Era exatamente o que mais lhe doía. Vislumbrar aqueles olhos quase japoneses. Os cabelos pendendo à face. Pele à porcelana. Valha-me, Deus!!!! Esquecesse, porque ele mesmo se condenara a não merecê-la. Doente de timidez desde menino. Era homem que não ia além do essencial, breve, na fala ou na expressão acanhada. Daí não ser por carinho, mas simplicitude, que encurtava o trato às pessoas. Dorinha era Dô. Janjão era Jão. Lili era Li. Ah, e Dandara...
Dandara era um doce. Notara desde os tempos em que, cedinho, ouvia o chamado à porta. Ela em lacinhos, a bandeja com café, pão amanteigado e torradas. Os pezinhos saltitando era o que mais o encantava. E gastava o deslumbramento até que a imagem se dissolvesse no vão das lonas. Fazia uma única pergunta: 'Sonhou com o quê?'. Foi repetindo, as perninhas de gazela se fazendo longas, a fôrma dos seios já em meio molde. E as respostas variando. Começaram com duendes, fantasmas, platéias que não sorriam, a morte da girafa. Até bater numa de que ele se lembraria por todo o sempre. O rostinho franzino como soletrando: 'Sonhei com você'
Não perguntou mais. Nem precisava. Os gestos declaravam. As xícaras tremendo à bandeja, na espera de que ele estendesse a mão. Mirada baixa, sem rumo. Ambos recolhidos. Ela, medo de ser preterida. Ele, ao temor de transformar um caso de amor em tragédia barata. Nem tinha ao certo por que alimentara tudo aquilo. E se amor era. Os ursos de pelúcia, as flores brejeiras, os primeiros brincos, os bombonzinhos, a vela do aniversário - o 1 e o 4 em cores diferentes, das que encontrara pelo caminho. Ele, solitário, acompanhando as primeiras aulinhas de contorcionismo dela.
Por fim, o bem-te-vi que Dara prometera batizar com o nome dele. E chamá-lo, desde então, de Bem-te-vi. Matutou, invernado, sobre o que ia pensar a gente do circo. Se daria envergonhado à mais leve pecha de sedução. Mais que isso: o que faria Zanzeu, pai de Dara e patrão. Com sorte, estaria no olho da rua. A dúvida era se vivo ou morto. E, inda que perdoado, não escaparia das barras das grades. Foi decorando discursos de defesa. Não lhe tocara um dedo sequer; jamais incentivara um romance; de sua boca não saíra nenhuma promessa vã. Noutra ponta, o braseiro do querer lhe ardia, chamava o coração ao desassossego.
Se aquilo não era amor de fato, o que mais seria? O tremor se avizinhando das pernas, a garganta em naufrágio. Mudou o tom. Juntou fôlego, escolheu uma camisa sóbria e marchou disposto a falar com Zanzeu que era isso mesmo. Que fora espontâneo, ao sabor das naturalidades e que estava seguro em formar família. No caminho, desacelerou. Melhor não. Melhor era congelar as evidências, colocasse uma pedra sobre o assunto e deixasse que o destino desse conserto.
Bastou uma semana. Dara empalitando, de não comer uma nesga. Os olhos endemoniados de choro. Até novela largou. E cruzou noites em febre, o nome Nilo, 'meu Bem-te-vi', saltando como fosse remédio de cura. O pai endoideceu. Planejou jogá-lo aos leões famintos, prendê-lo na jaula dos tigres. Não, não... O aquário de jibóias. Arquitetou, mas preferiu guardar o ódio em geladeira. A que não cometesse nenhuma injustiça inspirada num delírio febril
Foi, ele mesmo, confirmar a história. Nilo baixou a guarda assim que o viu, passadas largas, em sua direção. A bota folgada estrilando no cascalho. O bigode em saliva raivosa. Faria sua última apresentação e seria deixado num lugar qualquer da estrada. Era homem morto se o avistasse de novo. Agora, ao sol sem clemência, Nilo não se esqueceria da sentença. Engasgou poeira até que passasse o último caminhãozinho. Esperança de espreitar Dara, inda que num gesto de mão. Nada.
Olhou os caminhos de pó à volta. Escolheu a esmo e seguiu. A cartola pendendo, o jaquetão vermelho se arrastando. Até ouvir uma, duas, três vezes. Custou a crer. Notou a mecha de cabelos presa ao canto da bagagem, a vozinha repetindo 'Bem-te-vi, Bem-te-vi, Bem-te-vi...'. Contasse, acreditariam poucos. E o dariam por louco, naquele perdidão, abraçando a uma mala empoeirada como quem reencontra um velho amor.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. Uma linda história narrada com muita
    sensibilidade.
    Parabéns.
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. A introspecção mata como bala de revólver, e quando se junta aos conflitos de classes sociais, a muralha se impõe e a poeira da estrada se torna pouco diante de outros possíveis castigos. Amores impossíveis doem nos personagens e nos leitores de coração mole. Eu fiquei mal com essa história. As palavras suas, as suas palavras Murta, ferem fundo aos sensíveis.

    ResponderExcluir