domingo, 29 de agosto de 2010




Aqueles homens enormes

* Por Lêda Selma


O Paulo...Que figura! Alto, pancoso e simpático. Mineiro radicado em Nova Iorque, exímio como guia turístico. Falador, paciente, divertido. Sempre empolgado, dava a tudo dimensão exagerada. Tão logo conheceu nosso grupo, catequizou-o sobre as noites novaiorquinas e seus perigos, as melhores opções de compra e os passeios imperdíveis. Disposição para acompanhar-nos, sobrava-lhe. Às vezes, nem nos cobrava os excessos de quilômetros e de horário. Um amigão, ganhamos, naquele novembro de 1995.

Apaixonado por sua Eva (bem mais tímida e recatada que a da maçã), voltou a Minas Gerais só para descarregar a solidão, recarregar os sonhos e carregar a amada. E os dois encheram de amor e obstinação os cantos do pequeno aconchego americano.

Em conversas informais, Paulo soube que eu me formara em letras vernáculas. E não se conteve:
– Letras o quê? Repete esse nome aí, please! Nunca vi palavra mais linda. Você é letrada... Só podia ser mesmo, pra falar bonito assim...
Disseram-lhe que eu era poeta. E ele não coube mais em si:
– Poeta? Vocês tão é brincando comigo. Quer dizer que tô conduzindo, nesta humilde Van, uma poeta? Uai, é importância demais pra mim! E eu chamando a poeta de, simplesmente, Lêda, assim, tão sem-cerimônia, Lêda...
O passeio virou a maior farra. E lhe falaram dos meus livros. Aí, sim, ele extrapolou:
– Livro? Quer dizer que ela escreve livros, feito intelectual? Ganhei a sorte grande: amigo de poeta, de escritora de livros. Nossa, a Evinha não vai acreditar! Vou ter de levar a intelectual-poeta lá em casa. Vai me dar este gosto honroso, não vai? E quero também um autógrafo, com ‘dedicação’ e tudo. Preciso comprar um filme pra foto oficial: eu, a Evinha e a poeta. Posso abusar? Faça uma lista com um montão de palavras difíceis que eu vou decorar cada uma e falar todas praqueles turistas esnobes, que fazem pouco da gente. Quero ver a cara dos metidos quando eu proclamar que sou amigo de poeta, de escritora de livros, de intelectual em carne e voz. Vou meter as letras vernáculas neles, me aguardem...
Fui ao apartamento do Paulo. Lanchei, “dediquei” autógrafos, tirei as “fotos oficiais”, respondi perguntas estranhas e ainda ouvi: “Evinha, você reparou como ela é simples? Ri igual a gente, come igual a gente e só não é mais normal, porque fala bonito. Nem podia ser, né? É poeta, uai!”
O caminho das compras instigava-nos aos excessos. Mas algo me incomodava: tantos homens grafite-escuro, esbanjando estatura naqueles metros quadrados de massa muscular, tiravam-me o fôlego e me açulavam o pânico. Cheguei a ser, preventivamente, alertada por uma da turma: “Prepare o psicológico: frente, verso, direita e esquerda. E cada um maior que o outro”. Eram quatro, espalhados em suas grandiosidades, e eu, feito ilha, cercada de homenzarrões por todos os lados.
Um dos passeios próprios do turista de primeira viagem, a austera Washington. E, claro! o Capitólio. Súbito, a Lêda (sim, eu), já traumatizada com a constante presença gigantesca de tantos homens de peles lustrosas e, no caso, seguranças, expelindo autoridade por todos os gestos, pois bem, “a escritora de livros”, após passar pela catraca de acesso ao recinto, vê as demais pessoas desfazerem-se de suas moedas. Atarantada, volta e deposita sobre a esteira giratória todas as que possuía. Intrigada com a cena, uma das amigas, veterana no assunto, de pronto, recolhe-as e pergunta:
– O que deu em você para voltar e colocar as moedas lá, sem mais nem menos?
– Você não viu? Passei sem pagar. Imagine se esses grandalhões pensam que sou trambiqueira a praticar o famoso “jeitinho brasileiro”...!?
– Ninguém pagou nada, “intelectual-poeta!”. Puseram as moedas na esteira, apenas, por causa do detector de metal. Ei, espere aí: por que você passou sem problema, com tantas moedas, hem!?
– Intrujice de Deus, só pode! Acho que Ele percebeu o risco de infarto que eu corria, com mais um susto, e resolveu agir em meu socorro: camuflou as moedas para evitar uma alteração, às pressas, em Sua agenda divina...


(Publicado no jornal “Diário da Manhã” de Goiânia em 21 de março de 2009)

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”,” Erro Médico”, “A dor da gente”,” Pois é filho”!” Fuligens do sonho”,” Migrações das Horas”,” Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não”,! entre outros.

Um comentário:

  1. Uma vez Lêda Selma foi convidada e cumpriu a tarefa de falar sobre "Humor". Na ocasião ela disse não saber o motivo de tal convite, mas basta ler um trecho de uma crônica dela, para saber o motivo. E nem é preciso contar que se saiu muito bem na apresentação.

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