quarta-feira, 30 de junho de 2010




A primeira causa

* Por Marco Albertim

A mãe de Nenzinho aprontara na véspera o paletó de estreia. Ele olhou-se no espelho, achou-se tão elegante quanto no dia da formatura; mais ainda, porque na formatura tivera o brilho do anel, de flashes estampando a simetria da beca; agora teria a admiração submissa de trabalhadores rudes, gente humilde mas ignorante do saber jurídico conferido pelo canudo. Enfim! – disse com a cobiça dos olhos no anel. O anel fora posto no dedo médio da mão esquerda, à noite, antes de ele dormir. Ele desligara a luz do quarto a contragosto, porque não queria pregar os olhos para não parar de apreciar o luzente rubi na coroa do anel. Dormiu, e imaginou-se cercado de duendes, com poderes todos, mas rendidos à magia do centro na mão do causídico.

No café da manhã, não compartilhou com os irmãos o pão de costume; menos ainda o milho cozido com a manteiga escorrendo entre os grãos moles. Não queria submeter-se ao risco de ver uma mancha de gordura sobre a finura branca da camisa, ou da gravata azul com listras brancas. Preferiu comer torradas com mel, por ser de bom-tom; torradas crocantes e mel para entreter a obesidade prematura. Depois, tomou café com cuidados de matrona, não sem antes pôr um guardanapo cobrindo o busto saliente.
- Vai com Deus, meu filho... – disse a mãe, às suas costas, antes que ele cruzasse a porta de saída. Olhou-o de cima a baixo, buscando ciscos, algum fio de cabelo que pudesse comprometer a engomadura do paletó de linho.

Antes de entrar no carro, um Volkswagen de extração temporã, presente que o pai lhe dera, teve o cuidado de segurar um tratado de direito onde se lia Dura lex, sed lex; capa exposta. A autoridade da lei desautorizando suspeitas de ser, Nenzinho, um almofadinha.

Já sentado, lembrou-se do que ouvira do presidente do sindicato: “O homem é duro, tem fama de não obedecer à lei. Mas talvez um advogado falando com ele, o trato seja outro...” Nenzinho desceu do carro, entrou em casa e tirou da gaveta do birô de seu pai um velho revólver, calibre 38; tentou segurá-lo na cintura, mas os trajes e a saliência da barriga não o ajudaram.
- Meu filho!
- O homem é duro!

No sindicato, abancou-se pela primeira vez na sala reservada para o departamento jurídico. Não havia outros advogados, somente “dr. Nenzinho” ocuparia o departamento. O presidente não esperou por ele para fazer as derradeiras advertências, foi ao departamento.
- Vai armado?
- Vou para me prevenir...
- Mas o senhor já tem o diploma de advogado para se prevenir!
- O senhor mesmo me disse que o coronel Chico Heráclio não respeita nem a lei!
- É uma questão pequena. O trabalhador foi expulso de sua terra, dois hectares que cultivava há mais de dez anos, e não foi indenizado. Antes de entrar na Justiça, vamos tentar um acordo com ele. Se entrarmos na Justiça, não sabemos em quanto tempo a questão será resolvida.

Nenzinho quis viajar no próprio carro, mas o presidente ponderou sobre a necessidade de reafirmar a presença do sindicato, e indicou o veículo do sindicato com motorista próprio. Outros trabalhadores veriam...

Na rodovia, o Jipe correu tão veloz quanto a fama de atrabiliário do coronel Chico Heráclio. O veículo silencioso, indiferente à pompa do canavial ocupando terras de um lado e de outro, deu uma trégua à pouca apreensão dos nervos de Nenzinho. O motorista, prosaico, ajudou com histórias sobre os feitos do coronel. Histórias com violências, mas envoltas em traços hilários.

O jipe estacionou na porteira da fazenda. Antes que “dr. Nenzinho” descesse, o motorista pediu-lhe o revólver.
- Daqui pode ser que eu possa defender o senhor... – considerou.

O coronel, avisado pelo porteiro, soube do motivo da visita e só permitiu a entrada do advogado.

“Dr. Nenzinho” não teve tempo de sentar no sofá de couro de boi. O coronel, vindo de sua sala particular, atirou no chão seguidas vezes, nos pés do advogado. Nenzinho correu sem suspeitar da resistência das banhas do ventre. Embrenhou-se nos matos, pegou a carona de um caminhão.

Em casa, a mãe teve que refazer as costuras do terno de linho.

* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

2 comentários:

  1. Afe...e a compostura foi toda para
    o ralo!
    Imagino que Nenzinho tenha borrado
    sua cueca já que a honra correu antes dele.
    Adorei Marco! Parabéns.
    Abraços

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  2. Por causa de dois hectares, Nenzinho perdeu a engomadura e a compostura, e ainda deve ter sujado a roupa, já que as costuras do terno também desmancharam na carreira. Almofadinha sem tirar nem por. Mas quem não seria?

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