sexta-feira, 25 de junho de 2010


Escancarando a porteira

C
aríssimos leitores, boa tarde.
Aquela longínqua manhã de 8 de junho de 1958, de final de outono na região de Campinas, surgira ensolarada e com céu totalmente azul, mas com um ventinho gelado, muito chato, desses que parecem tênues lâminas de aço cortando as orelhas. Acordei, nesse dia, com uma idéia fixa na cabeça: tinha que assistir a estréia do Brasil na Copa do Mundo. Para tanto, precisava bolar uma estratégia para escapar, sem que ninguém me visse e nem sentisse minha falta, para o vilarejo de Jacuba, já que no internato em que eu estudava era proibida a posse de rádios. Como fazer é que era a questão.
Aquele era o primeiro dia dos exames de meio de ano, mas isso não me preocupava. As aulas estavam suspensas e só retornariam em agosto, após as férias. A prova seria de História da América, matéria que até então eu não tirara outra nota que não fosse dez. Tinha na ponta da língua nomes, datas, acontecimentos, enfim, tudo o que poderia ser perguntado. Minha preocupação era uma só: como fazer para sair do colégio sem que ninguém me visse.
Saí-me bem, conforme o esperado, na prova. Respondi todas as questões sem titubeio e terminei antes do que todos os meus colegas. Achei as perguntas surpreendentemente fáceis. Esperava maiores dificuldades. É verdade que vários companheiros disseram que o exame foi dificílimo. Foi nada. Eles é que não estudaram como deveriam.
O jogo do Brasil contra a Áustria, seria à tarde, às 15 horas, horário do Brasil. Para acompanhá-lo, não poderia chegar muito tarde a algum bar com rádio. Ademais, precisava agir com extrema cautela e ainda contar com muita sorte para não ser apanhado com a boca na botija. Se o fosse... Era expulsão na certa.
Um fator facilitou muito a minha estratégia para essa escapada proibida. Eu tinha o hábito de estudar sempre no mesmo lugar, um local cheio de mangueiras, ermo e silencioso, onde raras pessoas passavam. Tanto meus colegas de quarto, quanto os monitores, sabiam disso. Dei a entender, pois, nesse 8 de junho, que faria a mesma coisa de sempre.
Peguei o livro, o dicionário e o caderno de latim, matéria do próximo exame, marcado para dali a três dias, e disse a todos com os quais cruzei que, se precisassem falar comigo, eu estaria no bosque das mangueiras. Em vez de seguir para onde dissera, porém, fui no rumo oposto. Esgueirei-me por uma trilha, escondida atrás de várias árvores em direção a uma cerca de arame farpado, tomei o máximo cuidado para não ferir as mãos e, vagarosamente, passei para o lado de fora, além dos limites do colégio.
Parei, olhei em volta para verificar se não havia nenhum olhar indiscreto à espreita e, em seguida, dirigi-me, o mais rápido que pude, para o vilarejo de Jacuba. Estava vencida a primeira parte do meu desafio. Valeria a pena o risco? Eu achava que sim.
Na vila procurei o bar em que havia menos probabilidade de bater de frente com algum funcionário do colégio. As poucas ruas, de terra batida, sem asfalto, estavam completamente vazias àquela hora. Optei pelo barzinho que ficava ao lado da estação ferroviária. Entrei no botequim, escolhi uma mesa bem no fundo, longe da entrada e pedi um refrigerante ao proprietário. Só estávamos ele e eu no local naquele momento.
Mal chegara e, na distante Suécia, no acanhado Estádio Rimevallen Boras, na cidadezinha de Udevala, brasileiros e austríacos já estavam em campo. Cumpridas as cerimônias de praxe, o árbitro francês, Maurice Frederic Guiguê, autorizou o início do jogo, perante um público de 21 mil pessoas.
Os primeiros minutos da nossa seleção foram bastante nervosos. Os austríacos perceberam e partiram para o ataque, obrigando o goleiro Gilmar a trabalhar muito. Aos poucos, nossos jogadores conseguiram equilibrar as ações. Até que, aos 38 minutos do primeiro tempo, pude gritar o primeiro gol brasileiro, não apenas da partida, mas daquela Copa. O autor da façanha foi o centroavante Mazola (que quatro anos depois defenderia a seleção italiana.
Fomos para o intervalo com a vantagem no placar. Mas o time não jogava bem. O ataque brasileiro, nessa estréia, era muito diferente daquele dos jogos seguintes. O menino Pelé, por exemplo, continuava machucado e o técnico Vicente Feola preferiu escalar Joel na ponta direita, em vez do driblador Garrincha, pedido por toda a imprensa.
No reinício do jogo, Nilton Santos protagonizaria o lance que se tornaria uma espécie de símbolo de ousadia e de inovação daquela equipe. Naquele tempo, os laterais tinham funções exclusivamente defensivas. Eram proibidos de passar do meio de campo, para não levarem bola nas costas. Raros deles, portanto, conseguiam a façanha de marcar gols.
Nilton Santos, no entanto, nesse jogo, começaria a mudar isso e logo aos 6 minutos do segundo tempo. O experiente e talentoso jogador do Botafogo recebeu uma bola de Dino pelo seu setor. À sua frente havia um enorme corredor vazio. E ele resolveu, por conta própria, se aventurar por essa avenida na defesa austríaca. Foi avançando, avançando e avançando, sem que ninguém o combatesse.
Feola e o preparador físico Paulo Amaral faziam-lhe gestos desesperados para que passasse a bola e voltasse para o seu setor. Mas o ponta esquerda Zagallo fez-lhe um sinal para que avançasse, indo cobrir a sua posição.
Desfecho da história: Nilton Santos chegou à entrada da grande área austríaca, de onde desferiu um potente e certeiro chute, vencendo o goleiro Szanwald, que nada pôde fazer. Era o segundo gol do Brasil. A partir de então, e aí sim, nossa seleção deu espetáculo.
Estava escancarada a porteira não só dessa partida, mas de toda a Copa. O gol de Mazola, aos 44 minutos, veio apenas coroar uma discreta, mas bem-sucedida exibição do Brasil.
Da minha parte, consegui voltar para o colégio, tão furtivamente quanto saíra, com o livro, o dicionário e o caderno de latim debaixo do braço, sem cruzar nem com colegas e nem com funcionários, cansado, rouco de tanto gritar, mas leve e solto, andando nas nuvens, feliz como um passarinho.

Boa leitura.

O Editor.

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