segunda-feira, 21 de junho de 2010




Creiam, Suplício tocou a face de Deus

*
Por Eduardo Murta

Era dos céus que viria o sinal. Suplício cravara essa certeza logo menino, e não é ninguém mais, se não ele, aquela imagem de admirador já maduro espreitando os aviões que ciscam a pista da Pampulha. Sabia decorados horários de chegada, de partidas, nomes de companhias e, orgulho, o tipo de aeronave só pelo barulho. Dos velhos turbo-hélices à geração dos jatos.

Ele enxergava naquela capacidade de cruzar os ares um traço indiscutível de divindade. E, mais que aproximar os homens dos pássaros, viria a crer que aquilo era capaz de direcioná-los a rotas que só Deus, o deus em que ele punha fé, habitava. Acima até mesmo das tempestades. Absoluta plenitude. Não era casual, portanto, que tratasse a Santos Dumont como a um iluminado, mais que no plano científico, espiritual.

Daí a julgar que, procurando, ainda teria chance de encontrá-lo. O vislumbrava imortal, nos arredores da Paris que o consagrara. Haveria de estar por lá - fosse num castelo qualquer do século XV, numa taberna do Quartier Latin ou nos subterrâneos dos aeroportos. E que o aguardasse, porque o pouco dinheiro em sobra ele, Suplício, vinha reservando nas dobras do colchão justamente para num ano tal fazer a viagem.

Contava nota por nota, das pequenas sempre, e não se desprendia da convicção: um dia, Paris; um dia, Santos Dumont revisitado. Chegando, falariam, claro, sobre aviões e, fundamental, sobre o rosto de Deus. Pediria confirmação quanto àqueles olhos à Frank Sinatra, a ondulação dos cabelos, os traços do nariz e se sua voz de fato era terna. Mais: se fora recepcionado, era o que presumia, com um sorriso acolhedor.

Anotaria tudo na caderneta grossa, verde ("a esperança era um bem inegociável"), com sua caneta decididamente vermelha ("a História é escrita também com sangue"). E, a que não perdesse um detalhe sequer do futuro encontro, foi se preparando. Traçava e repassava ponto por ponto o roteiro de perguntas. E, depois de 27 anos de anotações, observações, considerações, se achava finalmente pronto. Confere e reconfere o dinheiro poupado em biscates de toda ordem. Acomoda à mala 007 e parte rumo ao guichê da companhia aérea.

Da porta a atendente flagrou o tipo: fazia gênero de leitor de bula de remédio, os olhos num vaivém descontrolado, lábios trêmulos, respiração em atropelo. Suava. Vinha em direção a ela. Assentou a valise ao balcão e pediu: queria bilhete de primeira classe para a capital francesa. Ficaria no desejo, porque a imensa parte das notas havia sucumbido com os sucessivos planos econômicos do país. Era letra morta.

Suplício viu conspiração do destino naquela recusa. Jurou que embarcaria. A qualquer custo, embarcaria. Rascunhou uma carta às pressas, endereçada ao próprio Santos Dumont, em caso de esbarrar numa prisão ou hospício. Pedia que não permitisse que o privassem de vê-lo. Descrevia que ele, iluminado, era feito fosse céu de brigadeiro para a conexão com Deus, luz maior. No aeroporto de Paris, quando retiraram aquele homem do compartimento de trem de pouso, o rosto congelado revelava uma sutil e misteriosa harmonia, destas de quem encontrou respostas. De quem suavemente tocou a face do Criador.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. Se Deus está naquilo que você quer ver
    então Suplício realizou seu sonho...
    Belo texto Eduardo, parabéns.
    Abraços

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  2. Um poema este conto, Murta. Parabéns!
    Abraços

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  3. Que tragédia! Além de esperança, obstinação em excesso. A frustração pode ser uma moeda amarga de tragar, e de morrer.

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