domingo, 20 de junho de 2010




Agruras e prazeres de uma reforma

* Por Isabel Vieira

Ok, a culpa foi minha. Eu podia ter me apaixonado pelo apartamento novo do prédio ao lado, mas se você é daquele tipo que, como eu, não resiste à tentação de uma reforma, vai me entender. Os americanos, com sua obsessão pelo descartável, não sabem o que estão perdendo. (Nunca entendi a razão da ótima qualidade das embalagens one way, que eles inventaram, só para ir ao lixo). Como explicar o prazer que sentimos ao fazer rejuvenescer velhos objetos – do sofá da sala à cúpula do abajur, surpreendente depois de revestida com a seda chinesa bordada, arrematada num brechó? Ou a cômoda da avó, charmosíssima após uma mão de tinta cor-de-vinho? Ou os vestidos indianos que repousaram duas décadas no baú antes de voltarem à moda?

Esse prazer deve ter algo a ver com anseios escondidos dentro da gente, sei lá. Revisitar emoções passadas, resgatar sentimentos em desuso, adaptar antigas percepções a novas situações. Não dá para jogar fora o que se foi ou sentiu – o que dá é para arrumar as gavetas, selecionar seu conteúdo, descartar o que não serve e buscar uma nova ordem para o que permaneceu.

Pois bem, o outro apartamento, mais barato, ficaria perfeito... apenas trocando-se os armários (que estavam sendo devorados por cupins), encanamentos, azulejos e pisos, e acrescentando-lhe dois luxos: uma banheira de hidromassagem e o velho sonho de ter um escritório em casa só para mim. Isso, é claro, implicava derrubar uma ou duas paredes para ampliar o segundo dormitório e torná-lo apto a acomodar as meninas, liberando o terceiro para o escritório.

Erro fatal: subestimar o tamanho da obra, do preço e dos prazos. Tenho uma amiga que, por conta de modificações tão “simples” como as minhas, está há dois anos atolada numa reforma, sem data para terminar. Mais um pouquinho e empata com a construção da Torre Eiffel, em Paris, aquele colosso de 300 metros de altura e 9 mil toneladas de peso, que levou dois anos, dois meses e nove dias para ser erguida – e olhe que com tecnologia do final do século passado!

Culpo, em parte, os arquitetos por esse equívoco; tal como os cirurgiões plásticos, nos contam apenas meias verdades sobre a extensão da operação que estamos prestes a empreender. Para uns e outros, tudo será muito simples, rápido e indolor, com um resultado final fantástico. Quem não arriscaria?

Fora isso, não tenho nada contra os arquitetos. A Nina, pelo menos, é uma criaturinha adorável. Supercriativa, desembarcou um dia de um jipe vermelho (ela mora num sítio) empunhando seu cartucho de projetos e, diante dos meus olhos maravilhados, foi despejando idéias fabulosas. Um closet materializado a partir de um canto morto do corredor. Uma porta original para o meu escritório, com metade falsa, escondendo um roupeiro. Um deslocamento mínimo de paredes e eis que as meninas ganham uma bela suíte. Gostei do seu ar desalentado de mãe que corre o dia inteiro, e deixa criança na escola, e visita não sei quantas obras, e não tem tempo nem para consertar os óculos, colados com durex. Fechamos negócio na hora.

Uma semana mais tarde, meu pobre apartamento lembrava uma cidade em pleno bombardeio. Dez homens, manejando picaretas com fúria incontrolável, quiçá terapêutica, arrasavam o que quer que houvesse no caminho; e, enquanto montanhas de entulho iam enchendo a sala, liquidando as belas tábuas de ipê, o telefone começou a tocar freneticamente. A vizinha do 92, senhora de idade, com enxaqueca crônica, implorava pelo fim dos estrondos. O vizinho de baixo acordara com água pingando na cabeça, por conta de um cano arrancado com a violência de quem extirpa um câncer. A mãe do bebê do 84 me responsabilizava pela crise de bronquite da criança, causada pela poeira. O condomínio ia ser multado em vários salários mínimos: seu Felício, o eletricista com cara de bonzinho, que já tinha me aplicado o golpe do "dinheiro para comprar material" (cachaça no bar da esquina), deixara fios descobertos na caixa de entrada de luz do prédio e sumira por uma semana.

Ah, quanta coisa se aprende numa reforma! Sabia que, quando se altera a posição das peças do banheiro, há que se fazer novos furos na laje (óbvio, os ralos mudam de lugar!), o que exige a aprovação de dois terços dos condôminos, já que a laje é bem comum do edifício? Meu gentil vizinho de baixo veio exibir, vitorioso, a legislação – e nem o síndico, um engenheiro, lhe garantindo que minha banheira absolutamente não afetaria a estrutura do prédio, conseguiu demovê-lo da idéia de me fazer colher 45 assinaturas antes de permitir que furassem meu piso. Que, bem lembrado, era o teto dele.

Mais tarde dei a mão à palmatória: o vizinho de baixo estava coberto de razão. Eu mataria quem abrisse dois rombos no teto do meu banheiro, inutilizando-o para uso, e sumisse. Foi o que fez o encanador. Seu José, o empreiteiro, sem conseguir explicar o desaparecimento do homem nem a compra de material superfaturado que vinha fazendo, acabou escorraçado pela pobre Nina, que, assustada, antes que eu sacasse uma arma, embarcou-o no seu jipe e saiu cantando os pneus.

Bob, o novo empreiteiro, prometia tranqüilidade. Com a autoconfiança e a pinta de um Schwarzenegger, chegou afirmando que sua palavra valia por um contrato e pediu o triplo do preço para terminar o serviço. Desesperada, concordei. Nessa altura, eu já intuía que os dois meses previstos para a obra esticariam para cinco e que o orçamento estouraria em 80%, como aconteceu. Mas fazer o quê?

Devo admitir que, até certo ponto, Bob não me enganou. Rápido como um raio (enquanto eu lhe devia dinheiro), trabalhou duro. Difícil foi fazê-lo voltar, depois de receber, para terminar detalhes que dependiam de Joca, o marceneiro, que, depois de se mostrar desesperado por não poder instalar os armários (encomendados e pagos havia quatro meses) enquanto os pedreiros não saíssem, só foi fazê-los... depois que os pedreiros saíram! Também é certo que Bob consertou estragos cometidos por seu antecessor, mas quanto aos que ele próprio causou (como instalar minha lavadora de pratos em 220 volts, quase queimando-a), aí a coisa já não é tão simples.

Como trabalhei com uma arquiteta, um empreiteiro e um marceneiro autônomos, até hoje Bob culpa Nina e Joca, que culpa Bob e Nina, que por sua vez responsabiliza Bob e Joca pelas minhas queixas. Ontem mesmo ela me ligou e, depois de se certificar de que nenhum ataque de fúria viria mais do outro lado da linha, revelou que descobrira o culpado pelo problema da lavadora de pratos – que, além da voltagem errada, fora perigosamente encostada no fogão: a loja onde comprei os armários de cozinha, que teria errado nas medidas.

Gracinha de pessoa.

Feliz no meu escritório novo, não quero mais caçar culpados. Culpada fui eu, que não me apaixonei pelo apartamento novo do prédio ao lado – e acabei gastando neste praticamente o mesmo valor.

* A paulista Isabel Vieira foi editora das revistas Capricho e Claudia. É autora de 20 romances juvenis, entre eles Em busca de Mim (FTD, Prêmio Orígenes Lessa - FNLIJ), E agora, mãe?(Moderna), O verão tem gosto de sal (Moderna) e O ano em que fizemos greve de amor (FTD, Prêmio Adolfo Aizen - UBE).

2 comentários:

  1. Tão real quanto assistir a uma partida de futebol à beira do gramado. Ou a um parto ao vivo. Parabéns pela reforma! E pelo texto!

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  2. Adorei! Texto tão bem escrito que foi como se eu estivesse lá , no meio da poeira, irritada com os pedreiros, chateada com os vizinhos. Enfim...Fiquei do lado de Isabel Vieira e contra as mentiras e as desculpas esfarrapadas dos contratados, e a incompreensão dos vizinhos. Mas o importante é que no final tudo deu certo. E se ela tivesse comprado o apartamento ao lado não teria motivos para criar este belo texto, não é?
    Parabéns!

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