terça-feira, 25 de maio de 2010




“Viver a vida? ”

* Por Risomar Fasanaro

Na novela “Viver a Vida”, exibida recentemente na tevê, o autor Manoel Carlos nos passou a idéia de que viver é mais fácil para os brancos e ricos. Para os negros, tudo parece ser mais difícil, e se forem pobres, então...

Raciocinem comigo: no final da novela nós vimos: Todos se saíram bem, todos sem exceção, só Benê se deu mal. Será porque ele era negro, pobre e favelado? Não sei.. No início tive a impressão de que a cor pesou até na escolha de Thaís Araújo para o papel principal. Foi mais fácil Santa Terezinha convencer Manoel Carlos a escolhê-la para o papel, do que o público aceitá-la.

Em muitos locais ouvi: “poderiam ter colocado ela em outro papel. Ela é fraca, não convence como Helena”. Percebi que embutido naquele discurso estava o preconceito. Falso, covarde e dissimulado como ele é no Brasil. Ninguém assume, mas está ali vivo, pulsante, latente. Era como se dissessem: “negro fica bem como coadjuvante, mas não como protagonista”. Bom, mas Thaís permaneceu no papel. Santa Terezinha lá no céu segurou as pontas. No final, todos se deram bem, só Benê se deu mal.

Não perdi nenhum capítulo. Não, não estava de passagem pela sala como muitas pessoas se desculpam por ver TV. Eu deixo tudo, sento e assisto a novela das oito, que vai ao ar às nove da noite.

Torci a cada capítulo pela recuperação do Benê, mas vi com tristeza e certa revolta que enquanto todas as personagens se deram bem, o Benê se deu mal.

Mais do que viver a vida, a novela a imitou, e algumas vezes a copiou. Até o pequeno núcleo negro formado pela dona da pousada em Búzios teve um final feliz, afinal são negros, mas bem de vida. É... só Benê se deu mal.

Luciana ficou paraplégica, mas logo contava com uma cadeira de rodas que custa uma fortuna. Ganhou uma cama inteligente que, como dizia uma das personagens, “só falta falar”. Foi presenteada com uma academia dentro da própria casa, uma bicicleta apropriada para para/tetraplégicos que deve custar milhares de reais. Coisa de país do 1º mundo, além de um carro que...Meu Deus!

Contava com a orientação constante de profissionais de saúde para exercitá-la e orientá-la em casa. E ainda por cima livrou-se do carrancudo Jorge e se casou com o grande amor de sua vida, aquela graça de personagem que era o Miguel.

Imagino aquela novela sendo vista por paraplégicos em um daqueles aparelhos de tevê das salas de espera do INSS...

Como Luciana estava sempre disposta, sorridente, e linda! É...Só Benê, se deu mal.

Helena casou com o milionário Marcos, descasou, e se casou com o bonitão vivido por Thiago Lacerda. Mas Benê? Benê se deu mal.

E Marcos? Começou com uma enorme crise financeira, precisava vender o barco, o helicóptero, talvez perdesse a casa, mas no final, nada se vendeu, nem se falou mais em crise. Depois das inúmeras traições no seu casamento com Teresa, se separa, casa com Helena, se separa, transa com Dora, e já estava de olho na prima que a novela mostrava como “bonitinha mas ordinária”.

Hipocrisia, maucaratismo, desonestidade tudo deu certo no final. Dora ficou com Maradona honesto, fiel, verdadeiro e bem de vida.

Só o Benê se deu mal...

Isabel foi outra que se deu bem. Depois de todas as grossuras, todos os “barracos” que aprontou, encontra um ricaço texano e vai viver o seu caso de amor.

E Benê? Benê se deu mal.

A novela propunha enfocar os problemas com o alcoolismo, e com a deficiência física. O tratamento para tetraplégicos que vimos era de país do 1º mundo. No Brasil só para ricos, para os que dependem do INSS está fora de cogitação.

Chego a pensar se a intenção de Manoel Carlos não foi nos cutucar, nos provocar. Mostrar a ficção da novela para nos levar a comparar com a realidade que vivemos. “Viver a vida” , enfim... Seria?

E o alcoolismo? Quase dele não se falou. Via-se – e muito – as personagens bebendo. Quando chegavam em casa, antes de dormir, quando estavam alegres, tristes, preocupadas ou comemoravam alguma coisa.

E a mocinha alcoólatra se curou tão depressa, como jamais vi na vida. Livra-se do vício, torna-se “top model”, e com seu namorado loiro de olhos verdes viverão felizes para sempre.

E Benê? Benê se deu mal.

Teresa, ex-mulher do mulherengo Marcos encontrou o francês Jean, que além de bonitão é rico e quer levá-la a Paris. Existe final melhor?

E assim todos terminaram bem: Ariane, Jorge, Malu, Carlos, Ingrid e todos os outros.

Só Benê se deu mal.

Alguém já viu chacina nas mansões dos Jardins ou do Morumbi?

Manoel Carlos inventou, um roteiro pro Benê? Não, apenas copiou o que tantas vezes acontece na vida real: negros, pobres, e favelados são executados tantas vezes com ou sem provas contra eles, que isso quase já se tornou rotina.

E mesmo tentando sair da criminalidade e levar uma vida honesta, nenhuma chance lhe foi dada. Afinal, me desculpem, mas Benê era negro, pobre e favelado. Morreu metralhado.

É preciso estar atento: negros, pobres e favelados não podem vacilar, não lhes é fácil errar e querer se recuperar. Têm de acertar sempre. Acertar na primeira vez.

Esqueceram de dizer isso a Benê, o único que não viveu a vida, e que por isso se deu mal. É... só o Benê se deu mal.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

9 comentários:

  1. Riso, eu não assisto mais novelas.
    Sei que o papel delas visa o entretenimento.
    Mas, se for para eu assistir e ficar p da vida
    prefiro nem ligar a televisão.
    Nas novelas pobre anda de táxi.
    Nas novelas pobre consegue pagar IPTU morando
    no Leblon ou em Copacabana.
    Preto ainda faz papel de empregado, salvo algumas poucas exceções.
    Por que tudo ficou tão cor de rosa pra uns e cinza chumbo pra outros?
    Pobre e favelado se dar bem na ficção é tão surreal assim?
    Novelas? Tô fora.
    Ótimo texto.
    Beijos

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  2. Ótimo texto! Uma abordagem sobre novelas que geralmente não são feitas. Ainda mais, com tanto primor.

    Parabéns!

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  3. 'e só o benê se deu mal' há de se tornar meu novo mantra heheheheheheh
    relamente dos poucos q ainda acompanhavam a novela, eu incluso, ningume engoliu o triste fim de policarpo quares... quer dizer, benê

    éééééé nubia, mas bem q vc assistiu o último capítulo né?

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  4. Fernando, meu filho é noveleiro.
    Fazer o que? rsrs

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  5. Pois é, Risomar, que ótima crônica! Sempre acompanhei as novelas do Manoel Carlos e gostava por conta do merchandising social que é uma de suas marcas, além do "Mundo encantado" do Leblon. Confesso que 'Viver a Vida" não prendeu minha atenção. Só o Benê se deu mal mesmo... caramba! Tudo correu muito bem para todos, mesmo os que pasavam por grandes angústias e uma série de adaptações, como a Luciana. Ouvi dizer que ela passaria por uma depressão profunda, o que seria natural ao enfrentar a nova realidade, depois melhoraria aos poucos, mas eis que de repente: zás! Surge a princesa mais feliz que antes, mais humilde, muito mais humana! E com uma cadeira turbinada! Nem um pouco compatível com a realidade da maioria. Enfim, novela é novela! Um beijo!

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  6. Vi o casamento e a lua de mel em Paris. Quem cuida ou cuidou de um tetraplégico sabe que por mais que se tenha dinheiro, ninguém acorda leve e cheirosa daquele jeito. Não pretendo aumentar o preconceito, mas a vida real é assim.

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  7. Gostei muito do seu texto.
    Eu que sou tetraplégico há 19 anos, embora vivendo em Portugal, numa outra realidade, achei o papel da personagem tetra, muito mal aproveitado. Escrevi-o inclusive:
    http://tetraplegicos.blogspot.com/2010/03/para-alem-de-luciana-novela-viver-vida.html

    Enfim...

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  8. Olá Risomar!
    Eu também assistí a esta novela e concordo com muito do que vc escreveu, mas existem contradições: lembra da cena da morte do Benê?! Ele foi executado na frente da Sandrinha e os bandidos deixaram ela ficar livre, leve e solta... Isso na vida real seria assim: Matavam ela de troco, pra não sobrar e contar a história. Só na Globo mesmo, pra ela ter escapado!
    Outra coisa, e o tal do "Coisa Ruim"? No final, virou "Coisa Boa" e "Fina" e foi morar na Vila do "País das Maravilhas", conquistando as mães das médicas... Só vivendo a vida com o Manoel Carlos, mesmo!
    A propósito, acho que a Helena da Taís Araújo foi a protagonista mais coadjuvante das histórias do Manoel. Acredito até que, a igualmente Negra e Linda, Camila Pitanga se sairia bem melhor no papel; pena que ela já estava protagonizando uma outra novela, inssossa, no horário das seis, da mesma Emissora. Fazer o quê?! Rsrsrsrs
    Abraços,
    Andréa Franco

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  9. Queridos Nubia,Ramazzini,Fernando Yanmar,Sayonara,Mara, Eduardo Jorge, Andréa
    Só hoje consegui ler os comentários de vocês, acho que meu computador estava com problemas, não conseguia ver os que faço nos textos de vocês e nem os de vocês nos meus, pode? Mas acho que agora se resolveu.
    Muito grata pelo incentivo. E fiquei superfeliz por ver que até o Eduardo Jorge de Portugal comentou. De todo coração, obrigada a todos vocês.
    Um beijo em cada um.

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