sábado, 29 de maio de 2010


O príncipe maldito: mazelas da realeza brasileira

* Por Luiz Carlos Monteiro

Não será novidade para os que fazem a comunidade histórica brasileira alguma notícia sobre o livro de Mary Del Priore, O príncipe maldito, por ocasião de sua reedição recente, no Rio de Janeiro, pela Objetiva. É provável, no entanto, que para muitos leitores que não tiveram imediato acesso ao texto, que perderam a oportunidade de lê-lo ou pelo menos folheá-lo na primeira edição em 2007, resenhá-lo agora sirva para chamar a atenção para alguns pontos e problemas. O fato é que a partir do subtítulo expressivo, Traição e loucura na família imperial, o leitor começa a imaginar o que virá nas suas páginas. E, realmente, a autora corresponde ao que se propôs num relato pungente e apaixonado, numa escrita de quem não mediu esforços para chegar ao seu objetivo, através do conhecimento detalhado do seu objeto. Porque nada parece escapar ao olhar de lince da historiadora.

Infância, internato, viagens, estudos, o privado e o externo são investigados com grande riqueza nominativa e documental através de pesquisa abalizada, exaustiva e segura da maioria dos eventos e relações familiares e sociais que absorveram o príncipe Pedro Augusto de Saxe e Coburgo. “O menino que queria ser rei” titula o primeiro capítulo, que enseja uma visada panorâmica em câmara lenta da chegada do navio Boyne, fazendo retornar o imperador Pedro II de terras europeias, no dia 1 de abril de 1872. O imperador, acompanhado de D. Teresa Cristina e dos netos Pedro Augusto e Augustinho, entra no Rio de Janeiro aclamado, recebido acaloradamente pelas forças aliadas que compreendiam ministros, militares, políticos, comerciantes, acólitos, cortesãos e populares. Fizera a viagem de dez meses para, entre outras coisas, visitar o túmulo da filha Leopoldina na Áustria, que morrera um ano antes de febre tifoide.

O príncipe Pedro Augusto, nascido em 19 de março de 1866, estava com seis anos e trazia esse triste legado da perda da mãe Leopoldina, além da ausência constante do pai Luis Augusto de Saxe e Coburgo, o Gusty, que pensava mais em caçar do que dedicar-se aos filhos. Gusty nutria esperanças de completar o quinto império de príncipes austríacos, alemães e ingleses, através de seu filho Pedro Augusto, que alimentava a possibilidade de expansão dessa dinastia europeia, nos anos em que a aristocracia era substituída pela burguesia em ascensão, cresciam o industrialismo e o comércio com evidências nos sinais de consumismo e de uma nova consciência da classe trabalhadora.

Posteriormente, a convivência conturbada com a tia Isabel e o seu esposo francês Gaston, o conde d’Eu, foram experiências que se somaram e levaram Pedro Augusto a estágios constantes de desequilíbrio emocional. O seu suporte era o avô, o imperador Pedro II, que o protegeu e educou após a orfandade, além de alimentar a ideia de tê-lo como seu sucessor. O imperador incentivava também a princesa Isabel a lutar pela sucessão. Essa posição dúbia de D. Pedro II teria consequências desastrosas para a família imperial e a monarquia. Ela iria permitir uma guerra surda, que duraria muitos anos, entre o neto Pedro Augusto e a princesa Isabel. A conspiração de ambos os lados era flagrante: Pedro fez aliados entre os liberais e até entre os republicanos, enquanto que Isabel tinha a seu favor abolicionistas e a gente da Igreja Católica. A circunstância de ser a filha mais velha do imperador dava-lhe direito constitucional ao trono nas viagens de Pedro II. O seu primeiro filho homem seria o sucessor natural, que nasceria somente em 1875, defeituoso de uma mão e recebendo o cognome real de príncipe do Grão-Pará. Representava uma ameaça a mais aos planos de Pedro de Alcântara, que ficara tão irado, invejoso e ressentido quanto a princesa Isabel, nove anos antes, no momento do nascimento do próprio Pedro.

A carolice da princesa e a assinatura de leis abolicionistas serão suas fraquezas maiores na luta pelo trono, gerando antipatia de uns (políticos, maçons e fazendeiros) e empatia de outros (escravos e católicos). Aliás, a passagem de Deodoro da Fonseca, antes amigo e comandado do imperador, para o lado dos republicanos, foi tida como um ato de vingança e retaliação contra Gaston, genro de Pedro II e marido de Isabel, que lutou na guerra do Paraguai substituindo Caxias, cometeu vários equívocos e deslizes arriscando vidas de brasileiros, tendo, entretanto, voltado como herói.

Uma viagem de Pedro Augusto com os avós à Europa entre 1887 e 1888 revela as suas qualidades de bon vivant, de engenheiro conferencista e colecionador de minerais, do articulador de si próprio visando o reinado brasileiro. Foi recebido pela nobreza do Velho Mundo e chamou a atenção da imprensa por onde passava, que não deixava de registrar positivamente os eventos dessa viagem. Há rumores de um suposto casamento do príncipe e as pretendentes são muitas, mas ele, solitário inveterado, pensando somente em reinar, e mesmo depois de ver frustradas suas aspirações, permanecerá solteiro por toda a vida, não tendo jamais se livrado dos efeitos da ausência do amor materno.

O acompanhamento cronológico da situação histórica da segunda metade do século 19, dos seus eventos políticos, literários e artísticos pelo mundo, autoriza a classificação do livro como literatura de não-ficção. Isso gera, também, efeitos perceptivos de outra ordem, como o deslocamento e a interpenetração de datas, estabelecendo o sincrônico de algumas décadas. Contudo, aparecem momentos em que Del Priore se deixa seduzir pela ficção, ao utilizar recursos desta, apesar de não se afastar totalmente da imagética realista renitente, da metáfora dura dos narradores historiógrafos e da ironia severa decalcada em pontos inesperados do texto. O relato biográfico excessivamente datado e descritivo transcende o histórico em passagens e trechos em que a escritora se aproxima da crônica em fragmentos e instantâneos da ficção, dando lugar a insights narrativos bem característicos do texto literário.

O príncipe maldito tem o mérito de humanizar a família real brasileira, de olhos azuis e ramos mais que misturados, a exemplo dos opostos Orléans e Coburgo. A obra mostra ainda que a estirpe da nobreza era tão mortal e tão suscetível a fatores externos e cotidianos quanto qualquer pessoa que não fizesse parte dos seus círculos fechados e reservados. O leitor, qualquer leitor, especializado ou não, se acaso entrar no embalo da leitura, terá dificuldades em abandonar o livro antes de ter virado a página final.

A loucura do príncipe D. Pedro vai intensificar-se ainda mais após a expulsão da família imperial do Brasil, com a proclamação da República. Tentará o suicídio, será internado em manicômios e clínicas, e falecerá, aos 68 anos, no sanatório austríaco de Tülln. E se aquele leitor optar por conferir depois as páginas pretas em tipos brancos que iniciam o livro, não sem intencionalidades editoriais visíveis, conhecerá as raízes de todas as mazelas do príncipe Pedro Augusto, em convulsão, isolamento e exílio na cabine de um navio em direção à Europa, sinalizadas pela morte precoce da mãe e pela não consecução do trono brasileiro.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

Um comentário:

  1. Ler a crítica foi muito instrutivo. Deu para saber um pouquinho desse período da história.

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