sábado, 29 de maio de 2010




Daiane Capelo Gaivota

* Por Urda Alice Klueger

14.08.2004 – 2º dia da Olimpíada de Atenas

Amanhã Daiane vai voar. Olha que já teve gente querendo voar neste mundo: desde Ícaro até Nádia Comanecci, passando por Santos Dumont, sempre teve gente querendo desafiar a lei da gravidade, e sempre eles nos enterneceram e nos deixaram imagens lindas, até mesmo quando a gente considera o terno ângulo desabado do chapéu do nosso aviador do 14 BIS. Nádia Comanecci, então, foi alguém inesquecível: lá se vão 26 anos desde que, como uma borboleta, ela voou por uma Olimpíada e deixou o mundo de boca aberta, aquela frágil menina que vinha da terra do Drácula, e que desmascarou a Transilvânia como terra de filme de terror. Depois de Nádia Comanecci deixamos de temer o Drácula; fizeram-se até comédias sobre aquele sujeito tão trapalhão que não viu aquela borboleta esvoaçante a crescer no seu território.

Mas amanhã será Daiane quem irá voar. Ela vem ensaiando vôos impossíveis faz tempo, já tem até revoada chamada “dos Santos” pelo mundo de lá de fora, e nunca ninguém voou como ela. E Daiane não é alguém da Transilvânia: Daiane nasceu no Sul do Brasil, no Estado do Rio Grande, terra de heróis inesquecíveis, e quem um dia poderá esquecer Daiane? Ela não só voa: ela pensa, e os seus minguados 45 quilos que a transformam em beija-flor são densos não só de beleza, mas de consciência social, de consciência política. Menina da terra onde um dia viveu o Negrinho do Pastoreio, ela sabe bem dos problemas étnicos: sua sobrinhazinha de quatro anos é chamada de feia na escolinha, porque é negra como ela, e Daiane é muito consciente de tudo – sabe, com todas as letras, que as criancinhas de quatro anos ainda não sabem discriminar, que há gente grande ensinando os pequeninos, e ela sabe ter pena pela maldade que se reproduz.

O Rio Grande do Sul é terra de resistências: tem um passado repleto de heróis, e Daiane é como eles – ela nos faz lembrar de Sepé Tiaraju, que defendeu as reduções jesuíticas até se tornar lenda, índio a lutar pela terra com um crescente lunar na testa a brilhar como o sol. Daiane não se limita a brilhar através de um crescente – ela é como um passarinho de luz, a tornar linda a etnia que talvez se sentisse feia, como uma incorporação de Steve Biko[1] no Terceiro Milênio. E ela voa.

E amanhã Daiane vai voar. Será seu primeiro vôo na Olimpíada de Atenas, e fico aqui a pensar como escreveria sobre ela aquele branco de Cruz Alta que levou o Rio Grande do Sul para o mundo: que diria Érico Veríssimo sobre o passarinho que é Daiane, a voar e a competir junto aos deuses do Olimpo? Ninguém entendeu das gentes gaúchas como aquele branco de Cruz Alta – por que teve ele que partir tão cedo sem conhecer Daiane para poder escrever sobre ela? Como ele não está, tento eu escrever alguma coisa – mas como se escrever sobre a personificação da beleza, da leveza e da magia, quando uma menina como Daiane dos Santos resolve virar gaivota e já não obedece às leis da natureza? Ah! Querido Mestre, como me sinto incapaz de contar o que vejo, o que meu coração sente! Daiane voa como nunca ninguém voou – não tem as penas de Ícaro, não tem o 14 BIS, não tem que voar para fugir de Drácula. Ela é como um certo Fernão que o mundo conhece há poucas décadas, um Fernão que poderia ser pássaro bobo a arrastar as penas nas areias da praia, mas que se negou à natureza e acabou voando tão alto quanto nunca nenhuma gaivota jamais voara. Eu diria que Daiane é irmã-gêmea do tal Fernão. Que ela não é dos Santos. Que ela é Daiane Capelo Gaivota.

E amanhã ela vai voar. Das suas eternidades, galerias de heróis vão estar a aplaudi-la, tão linda, tão leve, tão densa! E eu, aqui na minha humildade, vou chorar de emoção porque uma pequena brasileira teve a coragem da perfeição e saiu voando. Não acredito que ela possa ter algum azar e quebrar alguma asa, mas a gente nunca sabe. Então, para o caso do não-esperado, Daiane, eu já lhe digo: não importa o que vai acontecer até o final da Olimpíada! Importa é que amanhã você vai voar como nunca ninguém voou, e as suas asas baterão dentro do meu coração como se fossem asas de colibri. Porque ver você voar, Daiane, é como descobrir o Amor. E não bastam os olhos para vê-la de verdade – a gente só acredita que uma Daiane dos Santos existe mesmo se olhar para ela com todo o poder do coração.

* Escritora e historiadora de Blumenau/SC e doutoranda em Geografia pela UFPR

2 comentários:

  1. Daiane sempre será um ícone, um
    exemplo a ser seguido.
    Pena que a memória do povo seja tão
    volúvel.
    Ótimo texto.
    Abraços

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  2. Daiane não voou. Ficou em quinto lugar na última Olimpíada. Não foi devido a falta de preparo, de treino ou de determinação. Falhou sobre o peso das acrobacias inacreditáveis anteriores a esse dia. Mesmo com essa falha, será sempre um ícone, como bem falou Núbia. Desafiou além da gravidade, o preconceito nesse estado de brancos. Texto maravilhoso e emocionante, Urda. Arrancou sentimentos profundos, encarcerados lá dentro da alma. Daiane, inesquecível!

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