segunda-feira, 31 de maio de 2010




Bola oito, caçapa do canto

* Por Eduardo Murta

Bola oito. Caçapa do canto. A platéia, o adversário, ninguém crê. Mas bastava a ele, Simão, acreditar. Lustrou a ponta do taco, revisitou a trajetória, fez que beijou a probabilidade quase matemática de acerto e... Um golpe de mão abortou a jogada em pleno ar, travou o bastão no ensaio para a tacada. Ele girando o pescoço, atônito. Foi dar com aquela mirada de um fevereiro em que ele já não fazia conta, décadas atrás. Bastou. Porque lhe assopraram os ventos daquela véspera de Carnaval em que já se havia desfeito do relógio.

Da camisa. Do sapato social com fivela. Da correntinha de Imaculada Conceição. Da calça de tergal e, sobrando as cuecas, aquela mulher comprou-lhe o passe. O bamba da sinuca, das rinhas de galo, do carteado, amealhado por uma.... por uma pantera que a metade masculina da cidade beijaria os pés por honra de uma simples contradança. Arrematado, então pinçava-se a circunstância para um outro plano. O de entregas que beiravam a devoção. O mel fresco extraído três dobras de montanha dali. As ramas de azaléia salpicadas a cada centímetro da casa. O borboletário que armava e desarmava todas as manhãs, para encantá-la. E aquele jeito com que só ele, ninguém mais, a chamava. Repetindo Lu, Lu, como gatos desamparados.

Daí que não fosse casual que, por toda a vida, lhe seguissem as lembranças daquela madrugada em que o encontrara esmilingüido, a parte de cima da dentadura já empenhada na jogatina. Exibida como troféu. E ela mesma, rolinhos à cabeça, camisolão maldisfarçado pelo robe, entrando nas apostas para restaurar-lhe a boca. Sairiam dali com a promessa, repisada, de que não deixaria se repetir aquela história.

Ficaria no prometido. Porque, confiram, é Simão ali à porta do cartório, pronto para pôr em disputa a fazenda herdada do avô, meia dúzia de cabras e a coleção de discos, vinis raros, de Bienvenido Granda. Ele e verdureiro Dalmy fazendo mira, a 50 metros do sino da igreja. Os 38 na cintura, imitando bandoleiros mexicanos. Na contagem do três, Lu e Maria Lúcia, versão anjo da guarda de primeiras-damas, dobrando a esquina para apartar os tiros.
Mais que o risco de prisão, patrimônio dilapidado, não reservariam chance nem no purgatório fazendo aquilo. Se entreolharam, os bigodes perdendo a envergadura tensa, e foram afastando as mãos das armas. A multidão ensaiando o coro de vaias. Simão só se vingaria do desconcerto tempos depois, circulando triunfal pela cidade com as três leoas e o elefante paramentado, ganhos na prova de laço em vaquejada.

Às negativas de Lu em transformar o quintal num circo, fez o caminho de volta com o mesmo ar de celebridade. Não contou aos amigos, claro, sobre a sentença. Inventou falta de adaptação dos animais ao clima. Impropriedade química para o esterco que planejara comercializar. Jura, no fundo, que daria certo se ficassem. Cederia era para não se indispor. É nessas tantas concessões que ele pensa agora, namorando a bola oito.
Se vira a Lu, que retém o taco, e pede que o libere. Porque não perderia. Era caçapa do canto. Ela reluta. Aliança de casamento, era a primeira vez que Simão punha em aposta. Não permitiria. Ele insiste, invoca confiança. Dá com ela descendo as escadas do salão de bilhar. Prometendo nunca mais. Confere a platéia, o adversário. E arrisca.

São seis da manhã desta quarta, e Simão, a distância calculada, chama ao portão de casa. Baixinho, cuidadoso. Os janelões se abrem, cara amarrada. Ele acena, jeito menino, exibindo a aliança que mandara lustrar. E, do lado, a mulinha Pipoca. Laços rosados dando ar de presente. Para a sua Lu. Bola oito. Caçapa do canto. Tiro certeiro. Era capaz de apostar, ousassem, que não haveria como ela resistir.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

3 comentários:

  1. Há riscos que não se calculam
    pode dar certo ou não.
    Alguns pagam pra ver.
    Ótimo texto Eduardo.
    Abraços

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  2. Um vício que, além da emoção, nunca trouxe nada, apenas perdas materiais. Um dia perderá Lu numa dessas sinucas-de-bico. Mesmo assim, para ele, terá valido a pena.

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  3. Belíssimo conto Eduardo. Que ritmo! E se o leitor não prestar muita atenção, perde o melhor: o que fica nas entrelinhas. Parabéns!
    Abraços

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