domingo, 25 de abril de 2010


A voz lírica de Brasília

Caríssimos leitores, boa tarde.
Domingos Carvalho da Silva é outro dos expoentes da poesia de Brasília que, a exemplo de Marly de Oliveira, igualmente não pôde participar dos festejos dos cinqüenta anos da cidade que tanto amou. Uma pena! E por que se fez ausente? Por motivo de força maior: faleceu, em 2004, aos 89 anos de idade. Legou, todavia, uma obra poética sumamente valiosa, densa, criativa, empolgante e exemplar, lançando as bases da legítima literatura brasiliense.
Como Eudoro Augusto, Domingos também era português (nasceu em Vila Nova de Gaia, em 21 de junho de 1915), emigrando para o Brasil quando tinha apenas nove anos, instalando-se, com a família, em São Paulo. Mudou-se para a Brasília em 1960, com a mudança da capital federal para lá. E, ali, fez história.
Domingos Carvalho formou-se em Direito na tradicional faculdade do Largo de São Francisco. Foi, também, jornalista, funcionário público federal e professor de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília. Fez parte da chamada “Geração de 45”, a terceira geração do modernismo no Brasil (a primeira foi a de 1922 e a segunda, a de 1930).
Poeta dos mais respeitados e requisitados, cuja principal característica era o requinte de formas, temas e tons, Domingos Carvalho conquistou vários prêmios literários nacionais, como o “Olavo Bilac”, em 1950, da Academia Brasileira de Letras, e o Jabuti, na categoria poesia, em 1977, com o livro “Vida prática”. É citado por J. R. de Almeida Pinto, no estudo “Poesia de Brasília – duas tendências”, como um dos quatro pilares da vertente poética classificada de “culta”, ao lado de Anderson Braga Horta, Marly de Oliveira e Cassiano Nunes.
Entre seus vários livros, destaco “Rosa extinta”, “Praia oculta”, “Girassol de outono”, “A fênix refratária e outros poemas”, À margem do tempo” e “A viagem de Osíris”. A poesia de Domingos Carvalho é daquelas que, quanto mais lemos, mais queremos ler, pela elegância da linguagem, riqueza espiritual dos temas, delicadeza das metáforas e até por uma certa musicalidade que fica nos ecoando no ouvido por muito tempo. É daquelas para serem lidas em voz alta e dando asas à imaginação.
Selecionei três de seus poemas, reproduzidos no excelente portal do escritor Antonio Miranda (www.antoniomiranda.com.br) que prazerosamente partilho com vocês. “Lirismo” é do livro “Praia oculta”, e diz: “Ela subiu à montanha/com uma rosa na mão.//Contemplou o mundo à distância/com uma rosa na mão.//Depois se atirou no abismo/com uma rosa na mão.//E foi sepultada ontem/ com uma rosa na mão”.
“Síntese”, que o poeta dedicou a Almeida Fischer, é do livro “Girassol de Outono”: “Indiferente/à virgem que morre exatamente/ agora/ou à tuberculose que viceja, uma pedra qualquer/no fundo do mar/repousa.//Besouros mecânicos riscam com suas asas/a lua.//Indiferente/ao bombardeio, à epidemia, à fome,/uma árvore na praça/floresce.//Taumaturgos estão pregando a regeneração inútil.//Indiferente,/ o homem criado à semelhança de Deus/contempla.//Duram poucos momentos os naufrágios./ Breve e pouco aflita é a dor humana./Os incêndios devoram sem sadismo.//Indiferente à prece e à libidinagem,/ao crime e ao sacrifício,/a madrugada/passa”.
Alguns críticos vislumbram, na temática e na forma de se expressar de Domingos Carvalho inequívoca influência do seu ilustre conterrâneo Fernando Pessoa. Concordo. Mas o poeta luso-brasileiro (ou brasiliense, posto que de adoção?), no meu entender, é mais claro, mais explícito e mais revelador do que seu patrício lusitano.
Este poema “Anúncios classificados”, do livro “A fênix refratária” tem que figurar em qualquer antologia poética de língua portuguesa que se preze, pela sua originalidade e qualidade superior. Confiram: “VENDE-SE uma casa de alabastro/com duas janelas/debruçadas/de sol./Tem um olho de jade voltado para o Norte/e um pomar de pêssegos como seios macios./Tem mar próprio em trânsito para as ilhas/do mundo, e céu próprio servido por gaivotas;/e uma lua enorme e tropical/para week-ends.//
VENDE-SE grande mansão para colégio/ou asilo, rica de paredes;/tem um telhado como o das tartarugas./Os corredores são enormes/e do seu pátio central/não parte rua nenhuma./Os muros do quintal são tão subidos/que nem os cães nem a lua poderão/transpô-los./E no seu jardim desfila/um esquadrão disciplinado/de árvores sem frutos.//ALUGA-SE uma casa de alva/com três janelas para o amanhã./Um rio a contorna ao poente/e os seus jardins têm à noite/a luz indireta dos astros.//SENHORA, procura-se uma/que tenha os olhos da Gioconda,/que tenha a pele da Madona,/e a pureza de Santa Maria Egipcíaca/e o silêncio de Ofélia sob as águas.//AINDA HÁ VAGA numa ilha/para a que há de vir cheia de graça,/a que terá olhos de cinza/e mãos vivas como a estrela da paineira./Ainda há vaga onde o sol/vem de manhã sobrevoar o canavial./Onde as palmeiras residem junto ao mar/acenando com os braços aos navios que passam./Exigem-se referências/e cintura delgada como a haste dos coqueiros.//MÁQUINA DE ESCREVER —vende-se uma—/¬que escreve poesia e cartas;/deu corpo a oitenta elegias,/epitáfios e sonetos./A sua fita é um arco-íris/que dá a cor da pele às palavras./Dos seus quarenta e dois tipos/escorrem sinais como luzes/acendendo, à noite/numa cidade sem estrelas”.
Domingos Carvalho da Silva, português de nascimento, brasileiro por opção (naturalizou-se em 1934) e brasiliense por mútua adoção, merece, pois, ser considerado pelos historiadores (e de fato é) como um dos precursores, se não o precursor, da excelente e já rica literatura do Distrito Federal. Foi, ao longo de sua vitoriosa carreira neste complexo e frustrante mundo das letras, a autêntica voz lírica de Brasília, não única, mas insuperável. Nada melhor, portanto, para encerrar esta série comemorativa do centenário da Capital da Esperança, do que este ínfimo tributo (diante do imensurável legado que deixou) que respeitosamente lhe dedico.

Boa leitura.

O Editor.

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