domingo, 18 de abril de 2010


Vida e obra exemplares

Caríssimos leitores, boa tarde. Uma saudação especial aos novos seguidores, que se incorporam a esse bando de Quixotes com paixão pela Literatura. Agora, já somos uma centena. Ou seja, o equivalente a duas grandes salas de aula de alguma universidade bastante concorrida. Pararemos nisso? Não! O objetivo, agora, é o milhar.
O poeta Cassiano Nunes Botica, falecido em outubro de 2007, aos 86 anos de idade, foi um dos mais dinâmicos e eruditos pioneiros da poesia no Distrito Federal. Nasceu, na verdade, em Santos/SP, filho de imigrantes portugueses, em 27 de abril de 1921. Caso estivesse vivo, portanto, completaria 89 anos apenas seis dias depois do cinqüentenário de Brasília, cidade que tanto amou e honrou sobremaneira.
Além de respeitado poeta (foi amigo pessoal de Carlos Drummond de Andrade e de Mário Quintana, que admiravam bastante seus poemas), dominava todos os gêneros literários, sendo tão bom em prosa quanto em verso, além de ser meticuloso e atento crítico e carismático conferencista. Nosso personagem, portanto, tem vida e obra exemplares.
Há quem confunda esta série de textos, sobre a inserção de Brasília na Literatura, afirmando que o que escrevo é sumamente “laudatório”, como se fosse exigido de todos os que escrevem sobre literatura que sejam pedantemente ácidos, dispostos a demolir reputações, só apontando supostas “falhas” e contradições de colegas de letras. Minha intenção, todavia, não é e nunca foi escrever ensaios críticos, mas a de limitar-me a comentar textos e escritores de que gosto.
Por que tantos elogios? Exatamente porque trato, tão somente, de quem aprecio. E que raios de apreciação seria esta se eu deitasse falação e saísse dizendo cobras e lagartos por aí daqueles que me agradam?! Seria, no mínimo, incoerente, se não meramente nihilista, de um nihilismo estúpido e infantil. Há gente que é assim. Nunca fez nada que prestasse, mas é ágil (agílima) em criticar e tentar destruir os que fazem. Deus que me livre da companhia desses tipos!
Cassiano Nunes foi professor de Literatura Brasileira (entre tantas outras atividades, todas vinculadas, de uma forma ou de outra, às letras). Tinha, todavia, mente aberta. Sua visão de cultura era ampla, universal. Tanto que se especializou em Literatura Norte-americana, havendo estudado (como bolsista) em universidades como a de Ohio, Oxford e de Miami, todas nos Estados Unidos. Fez o mesmo com as letras germânicas. Estudou na tradicionalíssima Universidade de Heidelberg, na Alemanha, onde também lecionou Literatura Brasileira.
Como se vê, não tratamos aqui de nenhum escritor neófito, mero curioso, pára-quedista das letras, que eventualmente tivesse se aventurado numa seara desconhecida. Longe disso. Cassiano Nunes, além de tudo o que citei acima, foi, ainda, “professor visitante” em nada menos do que na New York University. É pouco? Claro que não. Mas não é só isso. Foi contratado pela Universidade de Brasília, onde se tornou um dos mestres mais populares e admirados por alunos e colegas de magistério. Convenhamos, é preciso que alguém tenha méritos, estofo e conteúdo para alcançar tudo isso.
Antes de mudar-se para o Planalto Central, Cassiano “colecionou” outros tantos feitos. Foi, por exemplo, incansável batalhador por uma causa (à qual, também, dedico esforços, nos limites da minha capacidade) que é a do estímulo à leitura no País, quando nossas taxas de analfabetismo ainda eram absurdamente altas, passando dos 60%. Defendia o barateamento do livro, para que o maior número de pessoas possível tivesse acesso a ele. E isso sabem quando? Em 1947, ocasião em que era secretário-executivo da Câmara Brasileira do Livro, pouco antes de seguir para os Estados Unidos. Ao regressar desse país, trabalhou na Editora Saraiva, com Mário da Silva Brito, contribuindo para um importante salto de qualidade dessa empresa.
Já em Brasília, Cassiano Nunes teve intensa participação na vida cultural da cidade, compondo poesias, lecionando literatura e fazendo concorridas conferências. Ocasionalmente, porém, sempre arranjava tempo para ministrar cursos de letras, quer no Exterior – na Universidade de Colônia, na Alemanha e no Equador, por exemplo – quer no Brasil – na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá.
Nos últimos anos, já aposentado como professor (aposentou-se na UnB aos 70 anos de idade), dedicou-se à pesquisa da correspondência de Monteiro Lobato. Procurou ajuda em várias instituições culturais do País, em vão. Nem assim, desistiu. Levou a tarefa a cabo, às próprias expensas. E, convenhamos, o magistério não enriquece ninguém.
Publicou vários ensaios sobre as cartas enviadas e recebidas por Monteiro Lobato e estes foram tão meticulosos e detalhados, que mereceram rasgados elogios de intelectuais brasileiros e estrangeiros (inclusive da Enciclopédia Britânica). Tanto que há por aí inúmeros livros, no Brasil e fora dele, sobre a vida e a obra de Cassiano Nunes.
O curioso é que ele começou a escrever poesias tarde, pouco depois dos 40 anos. Por que? Ninguém (muito menos ele) soube explicar. Mas conseguiu ser um poeta tão bom, que diversos dos seus poemas e livros já foram traduzidos (e continuam sendo) para vários idiomas, com destaque para o inglês.
Por todo este retrospecto literário e cultural – do qual dei, somente, pálidas pinceladas, pois mereceria todo um livro e dos mais volumosos – esse poeta com “P” maiúsculo não poderia ser esquecido em nenhum estudo histórico sobre a trajetória da Literatura no Distrito Federal. E, de fato, não foi.
J. R. de Almeida Pinto destaca-o, em sua “Poesia de Brasília – duas tendências”, entre os oito nomes mais representativos da nobre arte de poetar da cidade. O que eu não esperava, é que fosse classificado entre os quatro poetas que, no seu entender, simbolizam a “poesia de rua”, ou seja, a dos que não se preocupam com regras, definidos pelo autor como “marginais” (reitero, sem nenhuma conotação pejorativa).
Claro que isso não diminui em nada nem a importância de Cassiano Nunes e nem a qualidade da sua poesia. É mero critério de avaliação de J. R. de Almeida Pinto. Eu, contudo, não classificaria esse emérito mestre das letras dessa forma, diante da vasta amostragem que tenho diante de mim da sua preciosa produção. Acho-o culto, cultíssimo e, sobretudo, criativo e original.
Exemplo? Que tal este “Assassinato do menino”?: “Para que o homem se sobreleve,/é preciso matar o menino.//Sinistro capricho/da mãe natureza:/nunca foram vistos/xifópagos iguais;/um homem/preso por uma membrana/a um menino.//Contemplo o seu rosto no espelho,/homem gasto e grisalho./Apenas o pasmo dos meus olhos/denuncia a existência do menino.//É inútil ter pena!/Não há alternativa./Para que o homem sobreviva/e, resoluto, possa/dar nobre forma ao seu destino:/é preciso matar o menino”.
Como?! Você ainda não se convenceu?! Que tal mais esta amostra da poesia madura e sutil de Cassiano, neste poema “Alta noite”?: “Alta noite, leio Marianne Moore./Passos no lajedo./Olho através da grade./De fora,/os dois gorjeiam cumprimentos/com a cordialidade aflita/do vício carecido./Tão acessíveis suas carnes claras,/tão disponível/o frescor da juventude!/Partem desajeitados/com a recusa amável./De novo a solidão./Há luz demais!/Procuro agora/versos pássaros./Busco, também carente,/remota, salvadora canção”.
E o que dizer deste poema “Sacrário”?: “Poesia:/aprendizado perene/ou perito/artesanato?//Ofício, é o que é:/modesto,/proletário.//Parvos/os que se proclamam/ricos,/vencedores.//Não há vitória/nesta parda rotina,/não obstante/o invisível resplendor.//Conserva, pois, humilde/em eucarístico silêncio,/encerrado no peito,/o deus”.
Informo, ainda, que Cassiano Nunes é tão importante para a literatura brasiliense e, por que não?, brasileira, que a casa em que em que morava está sendo transformada em um museu. É o mínimo que Brasília poderia fazer por quem tanto a amou , e a dignificou, através da magia do seu incontestável talento.

Boa leitura.

O Editor.
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Um comentário:

  1. "A morte do menino" pareceu-me contundente. Lembrei-me das crianças que nasciam dentro do saco amniótico e as parteiras os chamavam de "empelicados".

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