terça-feira, 20 de abril de 2010




Presidiária

* Por Laïs de Castro

Tudo pode ser dito, tudo pode ser contado, até porque desde que eu saí de casa é como se eu tivesse saído de uma cela, já que passei as duas últimas semanas de cama, aquela febre fervida, aquela raiva contida, aqueles olhos ardendo, sugestões de chás de camomila e erva cidreira, doses maciças de analgésicos.

O sol bate forte, cego, vou indo meio que pro capenga, que firmeza, que nada, ainda hei de pegar aquele cara, mas por enquanto é por enquanto, engulo em seco o ódio de pagar sem ter comprado. Tento me manter viva para transar uma luta perdida, alguém vai se machucar, alguém vai morrer, alguém vai se salvar. Carrego um coração em tiras de pele e sangue, nenhuma diferença será ter o corpo também fatiado.

O quarto de pensão fétido obstrui meu pensamento, embarga minha lucidez. Escolho um fato e decifro mentalmente, escolho outro e esmiuço, mas eles se misturam e não sei, com exatidão, o que aconteceu. Também não importa quem bateu naquela porta e por que ela estava ali, morta. Tenho ganância de vingança, ânsia, esperança.

Vou e volto a pé.

Chego na casa do japonês, que fede a peixe, e trabalhamos em silêncio até que é servida uma polenta nojenta à guisa de almoço, aquela carne moída mergulhada em gordura, fritura, tortura, uma salada verde imunda, temperada com vinagre branco e sal e vinagre branco e sal e vinagre branco e sal, só. Copo de geléia, água de torneira, morna, quero a minha mãe.

O pagamento essencial, miséria pouca é bobagem, alta sacanagem que me fará voltar amanhã, outro dia, mesma hora, outro tempo, mesma hora. Agora é tarde.

Obs.:Com este conto, Laís de Castro venceu o Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro – Contos Curtos/2009. “Presidiária” vai integrar uma antologia com cem outros escolhidos entre os dos 3.517 participantes do prêmio.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura

4 comentários:

  1. As grades de ferro, agora se revestem
    pelo preconceito. A prisão só muda de
    cor.
    Ótimo texto Laís.
    Beijos

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  2. Uma rotina que mói o corpo e a alma. Corre todos os dias, mas não sai do lugar.

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  3. Oi, Lais. Legal seu texto.
    O livro do concurso já foi publicado? onde o encontro?
    Abraços.
    Ixra

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