quarta-feira, 28 de abril de 2010




A invasão da estatística

* Por Mara Narciso

Os jornalistas costumam ir ao local de um acidente quando morrem pelo menos duas pessoas. A frieza diante dos fatos é justificada pela expressão “números frios da estatística”. Está lá no jornal: o trânsito matou um jovem. A nota soa banal, mesmo com foto em local destacado da página. Mas quando o número um salta o muro e pula no seu jardim, tudo de transforma. O sangue encharca a sua vida e o seu gramado onde você vê o corpo destroçado ao lado da família despedaçada. Acontecem muitas perguntas e explicações de toda ordem, mas o entendimento nem sempre acontece.

O morto era um rapaz saudável, trabalhador, pai de uma menina de quatro anos. O quebra-cabeça vai sendo montado. Ele esteve com amigos, tinha bebido, perdeu o controle da moto próximo a uma ponte. Uma testemunha viu o momento do acidente. Um carro teria fechado o motoqueiro que acabou saindo pela tangente, enfiando a roda num buraco e sendo lançado à distância, momento em que o capacete voou, e ele bateu no chão, tendo a cabeça esfacelada. Desde o instante que o Corpo de Bombeiros chegou ao local, já diagnosticou a gravidade da lesão. No hospital, ficou ligado ao respirador por dois dias, e quando foi definida a morte cerebral, a família doou os seus órgãos. Questões técnicas impediram de eles serem aproveitados, e apenas as córneas foram utilizadas, dando luz a dois cegos.

A cerimônia do adeus teve a presença maciça da família dilacerada, de pais separados pela vida e unidos pela dor, que abraçados chorando, sensibilizaram a todos os presentes, e desencadeou uma cascata de choros. Presenciar os desdobramentos de uma perda tão sofrida extrai emoções fortes, numa dor em cadeia. Uma coroa de rosas vermelhas, símbolo da paixão, foi encaminhada pelos colegas do agente carcerário com a frase “para o colega que tanto admiramos sem nenhuma restrição”.

O pastor encomenda o corpo, dizendo aquelas coisas tristes que mencionam quando o féretro vai partir. Fala do bem, do amor e da vida após a morte. Consola a família e valoriza aquele que parte, dizendo o quanto ele é insubstituível. E é, pois cada um é único. O irmão segreda que o morto “não acreditava em muita coisa não”. Ele se referia ao fato do falecido não possuir uma religião específica. A mãe confirma o excelente pai e filho que ele era. Em cima do corpo, uma foto num porta-retratos mostra a alegria e a beleza do jovem. A mãe chama a atenção para esse fato mostrando aos presentes: vejam meu filho, tão jovem e tão lindo! Agora, o corpo jaz no caixão, em meio a flores e lágrimas, imensos volumes de lágrimas de todas as origens, sejam de parentes, amigos ou namoradas.

Entre os comentários, surgem aquelas possibilidades do que poderia ter acontecido e não aconteceu, do que poderia ter sido evitado, e não foi. O que será colocado naquele buraco no coração moído daquela mãe? Quando o corpo baixar à sepultura, qual grito será dado por esse pai desconsolado? Todas as vidas dos que estão em torno desse jovem homem estão destruídas. Muitos se perguntam o que será deles agora, diante desse vazio torturante.

O amigo de infância e vizinho custa a acreditar. Explica, como se isso fosse necessário, o quanto eles se davam bem. A eterna ex-namorada que sempre volta o namoro está transtornada. Ela sabe que é verdade, mas não quer aceitar que agora acabou para sempre. Não haverá mais volta. Acabou e ele nunca mais retornará. Rememora os períodos em que estiveram juntos desde a adolescência de ambos, um aos 14 e o outro aos 16 anos quando começaram a namorar. Fala do filho que nunca tiveram e que poderiam ter tido. Alega que o não dar certo de ambos passava por questões sociais e financeiras, que segundo o falecido eram um fosso intransponível.

E loucura das loucuras, a mãe esteve no local do acidente, desceu e foi olhar o sangue do filho no asfalto. É conseguir sofrer ainda mais do que o necessário, mas cada um sabe das suas necessidades. Após a missa de sétimo dia, a família começa a colocar as coisas no lugar, definir as questões práticas da morte, que são o inventário, a filha órfã, as coisas da vida real, que não esperam e precisam ser céleres.

Dias após o falecimento, a eterna ex-namorada fala do morto, do seu cabelo liso e comprido em boa parte da sua vida, da sua beleza mestiça, um pouco indígena, feito a mãe, e volta a lamentar a perda irreparável. Normal, muito normal o vácuo, o choro, os tiques, as insônias, os dias de apetite alterado. O que choca é a compulsão de ficar pensando no corpo desintegrando-se sob a terra. Não! É preciso impedir esse tipo de pensamento.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

5 comentários:

  1. Quando vi minha mãe passando mal, jamais
    passou pela minha cabeça a gravidade da situação.
    Colei-me a ela como um imã, na esperança de que
    não fosse nada demais...mas meu coração estava apertado.
    As cenas às vezes teimam em voltar e passeiam na minha frente. A dor ressurge, cutucando a
    ferida, que mais uma vez sangra.
    Não é fácil, são pensamentos que devemos lacrar.
    Pois eles nada acrescentam.
    Ótimo texto.
    Beijos

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  2. É verdade. Um belo dia, a estatística deixa de ser estatística e bate à sua porta, invade sua casa, mexe na sua vida e estamos conversados. Parabéns pelo texto, Mara.

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  3. Acho difícil ficar indiferente aos fatos trágicos do cotidiano. Me coloco no lugar de quem sofre e penso na lacuna que fica. Ótimo texto!

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  4. A saudade será eterna para as pessoas que o amavam. Só o tempo para aliviar a dor. Normal . Somos humanos.

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  5. Núbia, Marcelo, Sayonara e Celamar, como disse no texto, "um" não é nada, até ser alguém que amamos. No caso foi o filho de uma prima. Como digo e repito: tragédia não é envelhecer. É morrer jovem. Triste demais!
    Obrigada gente!

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