sexta-feira, 23 de abril de 2010




Bandeira de todos os tempos

* Por Urariano Mota

Nesse último 19 de abril Manuel Bandeira faria 124 anos.

No livro ideal em que Bandeira realizaria a ordem da sua obra, ela partiria da “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, para outra vida que viera ficando “cada vez mais cheia de tudo”. Esta seria a ordem ideal do grande livro, o da vida e poesia de Bandeira, segundo o crítico Otto Maria Carpeaux.

É uma grande ordem, reconheçamos. Queremos dizer, a vida que gerou essa ordem é uma vida fecunda, apesar da tuberculose do poeta, apesar da vida de solteirão, e por causa mesmo dessa particular vida, uma particular obra, reconheçamos. Mas a ordem do grande livro de Bandeira, para os leitores, não precisa ser a ordem que lhe deu a melhor crítica literária. A nossa ordem particular, a nossa bandeira, o nosso Bandeira é uma viagem íntima com os poemas que nos abalaram desde quando éramos adolescentes. E nos dizíamos, surpresos, “então isto é poesia !”. E por isso mesmo, por força dessa revelação, passamos a louvar e a ser amantes de

“PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.

A parte que vem do coração nos diz: aos 17 anos esse verso nos remeteu de imediato à primeira namorada, em um deserto de amor naqueles inesquecíveis e que o diabo os carregue tempos. E como era próprio esse verso, ao fazer de um roedor, de uma cobaia, a primeira namorada de um amante nas areias sem oásis. E quem sabe mesmo se Delma, Elma, Alma, não importa o nome, quem sabe mesmo se não era uma cobaia da experiência, da inexperiência do amor, uma namorada aos 8 anos na lembrança de um jovem? Um sentimento que ruge, que rói, mói e dói num desassossego sem rumo. Ah, noites escuras, malditas noite em claro e vazias dos subúrbios! Isso fala o coração que reflete esse verso.

A parte que vem da razão nos fala que por trás dessas linhas existe um bruxo, um homem experiente na arte de criar um poema, um ser feroz porque fere porque é poesia. Mirem, reflitam e meditem sobre o poema que cresce pelo pequeno, pelo minúsculo, pelos diminutivos: porquinho, seis anos, bichinho, limpinhos, ternurinhas, até explodir no inusitado, no súbito golpe, no absurdo da relação entre uma cobaia e o amor, “o meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”.

Uma sombra passou perto agora. Ela nos diz, ela não quer esperar, ela nos sopra: esse pernambucano tem uma voz e uma percepção aguçada, esse poeta possui um espírito muito fino. Há um modo pernambucano na sua expressão. Há um gosto na palavra, uma disposição das palavras, uma ordem e escolha das palavras que vão além do bichinho arisco que corre e se esconde. Vejam, Porquinho-da-índia é um poema escrito antes de 1930, mas um verso diz, “Levava ele pra sala”. Isso até então não era poesia nem português. Até hoje, em 2009, os gramáticos de boa fama condenam quem usa “levava ele”. Levava-o, corrigem, e vamos todos ser idiotas na felicidade da norma culta. Levava-o, para o inferno. E nada mais antipoético que um “levava ele”, sentenciariam os asnos, de 1930 a 2009 e vindouros.

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos
de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare.

- Não quero saber do lirismo que não é libertação”.

Os ótimos poemas, os bons poetas, os grandes criadores prescindem de comentário. O que deles se disser, já estará melhor dito no objeto por eles criado. O comentarista é um chato, um atrevido, um pretensioso, um mui digno representante da família Equus asinus. O máximo que poderemos pretender diante de um manifesto como Poética é falar à margem, rodear o capim, e mostrar nossos dentes cavalares para os semelhantes, a zurrar: mira, eu entendo esta ração assim... O sensato seria divulgar, divulgar e divulgar um poema que amamos, para com isso realizar o nosso homem civilizador. Para que todos gritem, em uma só voz, eu não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Por isso, a parte da razão nos diz:
Bandeira é autor de versos que atingiram aquele estado raríssimo de ir além do gosto da gente culta. Viraram quase uma reflexão, um anexim, um provérbio. Exemplos disso vêm à razão, sem muita pesquisa: “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”, ouvimos, quando nada mais resta fazer. “Foi o meu primeiro alumbramento”, e vejam que palavra bela, alumbramento, posta em circulação e moda na língua. Todos apreendemos de imediato o significado, porque o poeta nos diz isto depois de “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo”. Assim como também apreendemos pelo poema o sentido de “Vou-me embora pra Pasárgada” – sentido de fugir, sumir, buscar abrigo em uma terra utópica de felicidade. “Tenho tudo que não quero... vida noves fora zero”.

Essas coisas não se escrevem por dom ou presente dos deuses. Versos assim se conseguem ao longo de muita vida e estudo e observação. Em Itinerário de Pasárgada, livro fundamental de sua formação e poética, aqui e ali Bandeira nos deixa pistas:

“Antes de conhecer o manual de Castilho, eu embatucava diante de certos problemas. De uma feita fui, muito encalistrado, perguntar a meu tio Cláudio se ‘Vésper’ rimava com ‘cadáver’. A sua resposta negativa me inutilizou um soneto. Hoje vejo que quem tinha razão era o meu ouvido. Rima é igualdade de som. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Só muito mais tarde vim a saber que os ingleses rimam ‘be’ com ‘eternity’. Vim a saber que afinal a aliteração nada mais é do que uma rima de fonemas iniciais. Mas eu nada sabia de trovadores, nada conhecia da poesia espanhola... Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas. Neles, mais do que nos bons, se acusa o que devemos evitar. Não é que os defeitos que abundam nos maus não apareçam nos bons. Aparecem sim. Há poemas perfeitos, não há poetas perfeitos. Mas nos melhores poetas certos versos defeituosos passam muita vez despercebidos”.

É certo que todo verso é “produzido”, trabalhado, moído. Mas a linha no verso de Bandeira parece vir curtida, decantada, palavra por palavra. Raro ele corre em vôo livre de condor, antes plana, paira, na altura, contraditoriamente parecendo voar baixo, ao nível do chão. Do cotidiano, do minúsculo dos dias. Nele raro se vê o processo de livre associação, supondo que isso ocorra em um poema inteiro, inteiriço, que vem à luz. Queremos dizer, e contamos para isto com a boa vontade da compreensão de quem nos escuta, o seu verso não se derrama, não se espraia. O sentido geral do poema está antes no verso, o sentido geral do verso está antes em cada palavra.
Por isso mais adentramos, para que não nos acusem dos crimes de heresia e embuste. Por isso dizemos, o verso lapidar que sobrevive ao poeta, ao poema, à circunstância, não se encontra em outro poeta brasileiro com a frequência com que se encontra em Bandeira. “A vida inteira que podia ter sido e que não foi” é um verso que nos fica, para sempre, é uma luz que guardamos sem nem preciso conhecer Pneumotórax. (Na verdade, perdoem-nos a franqueza bárbara, de Pneumotórax nem sentimos a falta.) “Terei a mulher que eu quero na cama que escolherei”, e por isso “Vou-me embora pra Pasárgada”, a isso retornamos sem que percebamos, como quem retorna a um mantra. Vejam se nos explicamos bem:

“O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.”.

Qualquer verso desse poema, qualquer um, é um bem em si mesmo. Se isso é possível num gozo inteiro, cada verso é um momento de felicidade autônoma. E isso, e que se dane o hiato, e isso e nisso repete as circunstâncias da sua vida. Assim como a grafologia “explica” na letra hábitos do ser de uma pessoa, Bandeira refletia no poema a consciência da morte iminente. A vida se realizava em cada instante, como se fosse um breve independente, e o poema em cada verso, digamos assim, um pouco acima do afoito. A poesia, a criação, contra a morte próxima. Sabemos, claro, que isso deve ser assim para todo criador. Mas não com a urgência de Manuel Bandeira, ainda que tenha vivido 82 anos. Assim ele nos conta em Itinerário de Pasárgada:

“Quando caí doente em 1904, fiquei certo de morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose ainda era a ‘moléstia que não perdoa’. Mas fui vivendo, morre-não-morre, e em 1914 o dr. Bodmer, médico-chefe do sanatório de Clavadel, tendo-lhe eu perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu assim: ‘O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto está sem bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta, em suma, nenhum sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos ... Quem poderá dizer?’
Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”.

Nesse último 19 de abril, os zeladores de efemérides apontaram que o poeta completaria 124 anos. Se não houvesse morrido em 13 de outubro de 1968, acrescentaram.

“....Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada”

Os zeladores de efemérides não sabem. Nem imaginam que onde houver jovens em desassossego Bandeira continuará a iludir a morte.

* Jornalista e escritor

4 comentários:

  1. Bandeira...intenso e leve ao mesmo tempo.
    Poesias que embalam, encantam.
    Suas poesias são tão vivas quanto ele.
    Bela lembrança.
    Abraços Urariano

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  2. Que beleza, Urariano. E que vergonha eu não ter me lembrado de um dos meus poetas prediletos e que, além de tudo, tenho a honra de ser conterrânea.
    Você disse bem, e completo: é sempre ele que nos vem à cabeça quando a emoção nos toma por inteiro: " e quando eu estiver triste/ mas triste de não ter jeito/..." É isso. Você homenageou condignamente um dos maiores Poetas do Recife.E que do Recife "falava para o mundo".
    Abraços

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  3. Em 19/04/1886 nascia o poeta Manuel Bandeira. Faleceu em 1968. Realmente foi um dos maiores poetas do Recife. Aproveitando o ensejo, é bom relembrar o que o poeta dizia em 1963, na sua poesia Recife: "...Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas/Sem Arraes, e com arroz/Muito arroz/De água e sal/Recife (...)" E agora o que diria o poeta se vivo fosse?
    Abração do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  4. Grato, Risomar, grato, Nubia, grato, Calvino.
    A Calvino um esclarecimento também: é claro que esse raro momento de reacionarismo de Bandeira não ofusca o melhor de sua poesia. Aliás, esse poema foi escrito numa conjuntura de mágoa com os comunistas, depois de um longo namoro de Bandeira com a esquerda. Por coincidência, o período de sua melhor poesia.

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