sábado, 27 de março de 2010




Sob um céu de domingo

* Por Luiz Carlos Monteiro

Este é o título de uma novela do escritor pernambucano Paulo Caldas, publicada em 2009 pelas Edições Bagaço. Tendo incursionado pelo ensaio e pela narrativa infanto-juvenil, mais recentemente Caldas vem trabalhando a ficção que contempla a novela e o romance. Sob um céu de domingo é uma narrativa desconcertante, de personagens fortes que se removem na ambientação movediça que caracteriza países da América do Sul em estado de golpe ou sitiados.

A personagem central, cujo nome só se sabe ao fim da narrativa, estabelece um diálogo e uma relação amorosa com outra personagem, Camila. Deliberadamente oculta, Camila em nenhum instante se manifesta. Mas persiste a dúvida, em todo o texto, se a personagem redonda e definidora é feminina ou masculina, quando enfim descobre-se o seu nome: Adelaide. Quando Adelaide e sua mãe são exiladas, percorrem um roteiro que inclui a saída pela Ilha de Trinidad e o Brasil como ponto de chegada.
Em São Paulo, são esmiuçadas vivências de uma família pequeno-burguesa, com seus costumes arraigados e seus desvios subliminares e latentes. Os mortos descem dos retratos e mostram seu desempenho fantasmagórico e sua voz inaudível. Alguns dos vivos parecem estar mortos em vida. A casa dos Cordeiro Farias é controlada com mão de ferro por Adelaide, a matriarca que não se importa com os filhos, irmãos e com a neta Adelaide.

Uma figura marcante no livro é Gabriel, obsessionado pela morte dos outros e a própria: “Deitava-se no chão, junto ao aparador, à meia-noite, rodeado de velas acesas; maquiava as faces de pó de arroz, passava lápis de sobrancelhas enegrecendo em volta das pálpebras e vestia uma mortalha branca. Exigia que os empregados cantassem réquiens, carpissem seu féretro e rezassem o terço até a última conta do rosário. Como a morte não acontecia se levantava irritado a insultar os santos, anjos, arcanjos, serafins, querubins; blasfemava aos gritos e gargalhadas para em seguida, ofegante, se recolher ao quarto e dormir”.

Paulo Caldas reveza momentos de um estilo rebuscado (para nomear e descrever a paisagem exterior ou as disposições internas de lugares e objetos) com outra faceta mais acessível e derivada do popular (através de ditos e chistes, de palavras articuladas no estágio bruto da linguagem oral). Montagens e colagens de títulos de livros de outros autores, fragmentos de letras de música, versos soltos e recortados são introduzidos aleatoriamente em frases e parágrafos. Aliás, este recurso também aparece em parte em seu livro de 2007, A lua em sagitário.

A intencionalidade do autor fica clara no percurso de um texto que não mais se quer experimental, mas revela sua inteireza na análise dos sentimentos humanos e na apresentação de situações do embate político ditadura vs. democracia que configura o continente americano. O introspectivo aqui, paradoxalmente, cede lugar ao diálogo franco e à exposição de motivos tradicionais e familiares. Aflora-se, assim, o conjunto arbitrário das posturas, atitudes e hábitos arraigados proporcionados pelas dominações seculares que, ao fim, são questionadas e combatidas pela revolta que impulsiona certos personagens.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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