segunda-feira, 29 de março de 2010


O jogo das máscaras

* Por Paulo Valença

1
- Tchau, Bete.

Ela lhe oferece a face esquerda, sorrindo, num gesto gracioso, nervosinho e recebe o beijo.

O homem gordo afasta-se em seus passos lentos, abre a porta (é sempre meticuloso nos menores gestos) e fechando-a por fora desce a escadaria ao lado, para no oitão da residência entrar no automóvel cinza-prateado e partir.

Ela ouve o som dos pneus e adentrando no terraço e debruçando-se no parapeito, segue o auto que cruza o portão largo (aberto automaticamente pelo homem) e ganha a rua de resumidos pedestres e um ou outro veículo cruzando-a.

Então ela ergue a mão no gesto de saudação e sorrindo, retrocede à sala espaçosa, com sofás, a mesinha ao centro e os quadros com paisagens nas paredes brancas.

Deixa-se cair no sofá mais largo. O Nestor se foi. Quando o verá? Ora... Bastar-lhe-á que telefone e ele virá, gordo, rosado, calvo, sorridente, feliz em sua solicitação.
- Sim, Bete?

Os olhinhos brilhantes na demonstração de subserviência em ser útil. O andar lento, depois no leito, a falta de jeito dele, sem a satisfazer. Sim, aqueles minutos são para ela mais de suplício do que de uma entrega, de um prazer... Ah, até quando suportará essa amizade “colorida?”. Se não fosse o conforto que ele lhe proporciona, a vida de nada lhe faltar, não lhe seria a amante, nessa representação de hipocrisia que, intimamente, condena, revoltando-se.
- É Bete, mas, assim é a vida.

Sim, assim é a vida. Afinal, todos (todos!) representam seu papel, de uma maneira ou de outra. Essa é que é a realidade sem máscara.

Ergue-se e encaminha-se ao banheiro. Lavar-se. Trocar de roupa e sair. A noite mal começou e nesta sexta-feira, há o “agito” natural nos barzinhos, pontos de encontro de casais, amantes, os boêmios que vivem as horas da descontração, a fuga...
- A fuga... de todos os problemas.
Concluiu baixinho, no hábito recente de dar voz ao que pensa.

Abre o chuveiro e recebe no corpo moreno, esguio de manequim, o líquido morno, acolhedor, bom. Muito bom.

Basta de encucações! E devagarzinho se ensaboa, prolongando-se, prolongando-se.

2
- Tudo bem, espero.

Sorrindo o rapaz repõe o celular no bolso da camisa vermelha e erguendo o braço acena com a mão à garçonete, pedindo-lhe a cerveja. A primeira, enquanto aguarda a chegada da morena esguia, bonita, sua recente conquista amorosa, que logo aqui estará. Sorridente. Doida por aquele jogo de poses eróticas no leito do novo motel à beira-mar na praia de Olinda.
- A cerveja, bonitão.
- Certo, Maria.

A bandeja. A bebida. O copo. O afastamento da garçonete. E ele bebe, com vagar, sentindo-se o maior dos homens nesta noite boêmia, enquanto das mesas circunvizinhas com casais, vem o som de vozes, risadas, tilintar de talheres em pratos, gargalhadas, a zoadinha característica em ambientes de descontração.

Bete, a morena que se lhe mostrará insaciável, que também é amante do senhor gordo, rico industrial, que tanto lhe quer bem, que... Mas, o cara não lhe dar o principal, o prazer que ela deseja, a loucura das variações no jogo do amor no leito.
- Pensando na vida?

A voz. Mas, como ela chegou assim de repente, sem a perceber?
- Mas...
- Cheguei faz um tempinho. Estava ali lhe observando...
- Ah, Sim? Tudo bem.

Ergue-se e afasta a cadeira para trás:
- Senta.
Ela atende. Sorrindo.
- Pede um copo pra mim.
Mais uma ver ele ergue o braço e acena com a mão aberta à garçonete.
- E aí tudo bem, Marcos?
- Tudo. E agora com você aqui, a coisa melhorou!

As mãos se procuram, os olhos se fitam, os sorrisos se exibem, na promessa das loucuras de logo mais.
- Trouxe o teu cheque.
- Você, morena linda é demais!

Então a mão de longos dedos desprendendo-se de sua mão abre a bolsa a tiracolo, buscando o papelzinho ante os olhos interesseiros do rapaz.

De uma mesa próxima explode a risada, como se fosse a testemunha indiscreta da cena disfarçada do preço do amor.

Conduzindo a bandeja Maria tudo entende ante o que presencia. E sorri. Compreensiva, dentro de sua difícil vivência de operária noturna. Mas, o que tem isso? Cada vida com o seu rumo. Seu mundo. Tudo enfim é normal.
- O copo.
- Obrigada. Traga outra cerveja. O que temos pra tira-gosto?
- Menina bonita temos surruru-ao-coco, agulha-frita, empadas, sarapatel. O que vai querer?
- Traga o sururu.
- Certo, minha linda.
Responde a garçonete e move-se por entre as mesas, retornando ao balcão, onde pedirá o que lhe foi solicitado.
- Uma cerveja e um pratinho de sururu.
- Certo, Maria.

Voltando-se à pequena abertura atrás de si, na parede, o sujeito magro, envelhecido então grita:
- Sai um sururu!

Pondo a bandeja sobre o balcão, Maria espera. Impaciente. Ah, se logo amanhecesse, para “largar”, descansar dessa vida malvada, e sem futuro...


* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

6 comentários:

  1. Sujeição conveniente, onde
    a consciência prefere se
    manter adormecida.
    Ótimo texto.
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Em relação ao jogo de interesses, bem diz uma amiga: " um quer belezura, a outra quer bufunça". É igual a tiro trocado: não há perdedores. O "amor" é moeda.

    ResponderExcluir
  3. É o mundo das máscaras. Mundo cruel em que cada um tem seu preço.Muito bom texto.
    abraços

    ResponderExcluir
  4. nubia,
    Você está certa: "Onde a consciência prefere se manter adormecida".
    Assim é a vida... nesse jogo dos próprios interesses.
    Abraço. Paulo.

    ResponderExcluir
  5. Mara,
    Sim, "O amor é moeda", que cada um a usa ao seu modo, conforme a própria consiência.
    Abraço. Paulo.

    ResponderExcluir
  6. liriodoprado,
    É mesmo colega, nesse mundo cruel das máscaras, cada um se vende, tem o seu preço. Essa é que é a realidade.
    Abraço. Paulo.

    ResponderExcluir